CRÔNICA

Janelinhas – Por Luis Cosme Pinto

De surpresa o acaso faz um agrado, o presente é história miúda, de gente comum

Imagem ilustrativa.Créditos: Luis Cosme Pinto
Escrito en OPINIÃO el

Meio-dia, a tela do celular se acende escandalosa: LIGAÇÃO PERDIDA. NÚMERO DESCONHECIDO. SPAM SUSPEITO.

Minha curiosidade de jornalista e meu interesse de cronista me aconselham a tentar saber um pouco mais.  

Ligo de volta, ninguém atende. Um minuto depois, um áudio de 12 segundos.

“Fala Carneiro, boa tarde. Tudo bem? Ôooo Carneiro, tinha ligado àquela hora porque seu Ovídio me passou seu contato que era para passar um frete pra mim, cara. Mas eu consegui arrumar agora, entendeu? Mas obrigado, viu?”

É uma voz masculina, pausada. Ouve-se o ruído de carros passando, nada que atrapalhe a comunicação. Sinto simpatia no dono da voz e, sobretudo, vontade de avisar ao Carneiro, certamente um motorista, que o frete foi resolvido.

O único problema é que eu não sou o Carneiro, muito menos o Ovídio. Algumas horas depois, outro áudio. Outro frete. Outro engano.

“Fala Carneiro, beleza? Ôooo Carneiro, deixa te perguntar: quanto você me cobra um frete para sair daqui de perto do mercado Silva e ir ali na Pedra Branca? Ali no trevo de Jandira, antes de você pegar pra ir pra Castelo, ali no comecinho, sabe? Quanto você me cobra pra levar uns “plástico” ali, umas “apara”?”.

Já me ensinaram que no mundo digital, “áudio com áudio se paga.” Mando o meu. Aviso que meu nome não é Carneiro, não tenho caminhão e também não faço frete.

Só aí presto atenção à foto de identificação. Vejo uma família e o nome do dono do telefone. Edmilson é um homem de cabelos pretos, pele clara. Ele está com um cordão dourado, de duas voltas. A cabeça tomba levemente para a direita e encosta no rosto de uma mulher. Ela é jovem, de óculos, cabelos claros e um sorriso exuberante de dentes branquíssimos. Quantas vezes olharmos a foto, tantas vezes seremos conquistados por aquele sorriso. Não há dúvida: ali está uma mulher feliz.

Não é a única. O terceiro rosto é de uma menina, talvez 7 anos. A garota de cabelos cheios, tranças coloridas e olhos de jabuticaba, tem a bochecha grudada na da mãe e é a cara do pai. O sorriso é tão natural quanto o da mãe, a diferença são duas lacunas. Os dentes de leite se foram e os de gente grande ainda não apareceram. Duas janelinhas. Um charme. A família posou pra foto em um bosque. Vejo, ao fundo, algumas árvores, plantas e um resto de grama. É a cara de um domingo no parque.

Se já estava curioso para saber um pouco mais de Edmilson, agora é difícil suportar. Minha vontade é telefonar, mas Edmilson é mais rápido e dispara o terceiro áudio.

“Oooo amigão, desculpa. Seu Cosme, né? Ooooo seu Cosme...desculpa, viu? É que eu peguei o contato com um rapaz que tinha um caminhão e aí ele vendeu o caminhão pro tal do Carneiro, aí ele me passou o contato. Aí eu salvei, mas desculpe, tá? Obrigado pela atenção. Deus abençoe.”

Mesmo sem entender como o telefone do Carneiro virou o telefone do Cosme, gosto cada vez mais do jeito espontâneo de Edmilson. 

Tomo coragem e com uma mensagem de texto primeiro explico que vivo de escrever histórias e depois pergunto:

- O que você faz?

- Tenho depósito. É que nem ferro velho. A gente compra sucata de catador e depois vende para a reciclagem.

- Faz tempo?

- 20 anos. Pego de tudo, ferro, madeira, papelão, mas a maioria é plástico.

- Por isso, que você contrata os fretes?

- Isso. Depois da Covid, a coisa melhorou. A coleta aumentou e aí é que nem o pessoal fala: a gente fatura mais e protege o meio ambiente.

- Me explica melhor.

- Já imaginou se tudo isso que o pessoal cata ficasse na rua? Lixeiro nenhum dá conta de limpar. Mas no nosso esquema é diferente, em vez da sucata correr pro rio e depois pro mar vai ser reciclada e reaproveitada.

- Muito obrigado por me contar, Edmilson.

- De nada, espero que o senhor tenha gostado da minha história. Pode deixar que eu já peguei o telefone certo do Carneiro.  Mas também vou salvar o seu. Deus abençoe.

Era uma história assim que eu queria: simples, surpreendente e boa de ouvir, que nem o Edmilson.

*Luis Cosme Pinto é autor do livro de crônicas Birinaites, Catiripapos e Borogodó, da Kotter. O livro foi semifinalista do prêmio Jabuti 2024.

**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

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