Opinião

O cerco da morte: Gaza sob a necropolítica de Israel

O ataque à Flotilha da Liberdade revela que não se trata apenas de exterminar palestinos dentro de Gaza. Trata-se de impedir que qualquer resquício de solidariedade internacional atravesse o cerco

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Graduado em Filosofia (UNEB), professor, escritor, ghostwriter, revisor crítico, palestrante e enfoque em filosofia política.
O cerco da morte: Gaza sob a necropolítica de Israel
Gaza destruída. GIL COHEN-MAGEN / AFP

O massacre em Gaza já dura mais de um ano. Um ano de bombardeios sistemáticos, destruição em massa e uma brutalidade que não poupa nem crianças. Mais de 48 mil palestinos foram mortos, segundo o ministério da saúde de Gaza, sendo quase metade mulheres e crianças. Hospitais foram pulverizados. Escolas, abrigos e até comboios humanitários viraram alvos. A Faixa de Gaza, espremida em seus 365 km², tornou-se o laboratório cruel da mais perversa engenharia de morte do século XXI. Com o aval das potências ocidentais, em especial dos Estados Unidos, Israel, que se vende como bastião da civilização, converteu-se no artesão da barbárie e consolidou um regime de apartheid, segregação e extermínio.

Em meio a essa calamidade, uma pequena embarcação, a Flotilha da Liberdade, rompe o silêncio cúmplice da comunidade internacional. Com seus poucos metros de esperança, ela levava alimentos, água e medicamentos. Uma missão humanitária pacífica. Navegava em águas internacionais. Nenhuma ameaça militar. Nenhuma arma a bordo. Mesmo assim, foi atacada por drones israelenses na madrugada do dia 2 de maio. Uma ação criminosa e covarde. Um atentado contra os direitos humanos. Um crime contra a humanidade.

Entre os tripulantes, estava o brasileiro Thiago Ávila, conhecido por sua atuação em causas sociais e ambientais, agora vítima de um ato hostil e ilegal, que podia ter ceifado a sua vida. A denúncia do ataque foi confirmada por organizações de direitos humanos e pelos próprios membros da tripulação. Israel, sem qualquer justificativa plausível, bombardeou uma embarcação civil. Isso não é apenas um crime de guerra, é a institucionalização da arrogância imperial, o culto ao cinismo armado.

O ataque à Flotilha da Liberdade revela que não se trata apenas de exterminar palestinos dentro de Gaza. Trata-se de impedir que qualquer resquício de solidariedade internacional atravesse o cerco. É o total controle sobre o que entra, o que sai, o que vive e o que morre. Trata-se, como define o filósofo Achille Mbembe, da necropolítica em sua forma mais crua: o poder soberano decidindo quem merece viver e quem deve morrer, e, no caso palestino, morre-se até depois da morte, nos cemitérios destruídos e nos cadáveres empilhados sem sepultura digna. O regime israelense, nesse sentido, não é apenas colonial. É necrocolonial. Ele administra cadáveres, regula a miséria e transforma o humanitário em ameaça.

A brutalidade que testemunhamos não é desvio. É método. É o ultraje transformado em normalidade. É o mundo dito civilizado ajoelhado diante de um genocídio televisionado. O massacre de Gaza é um espelho perverso do nosso tempo: um tempo em que o sofrimento de um povo pode ser monetizado ou ignorado, desde que seja conveniente aos interesses geopolíticos do Ocidente. Que o ataque à Flotilha da Liberdade nos sirva de alerta. Que a coragem de Thiago Ávila e de seus companheiros seja nossa bússola moral. E que a memória das vítimas de Gaza não seja mais uma nota de rodapé no fracasso das nações. Gaza grita. Gaza resiste. E nós, do lado de cá, não podemos nos calar. O silêncio agora é cumplicidade. E a palavra, quando dita com coragem, pode ser o primeiro passo para a justiça.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum

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