Nesta terça-feira (6), a Índia confirmou ter disparado bombas contra o território do Paquistão, em uma agressão dura entre os países do subcontinente indiano.
A tensão já estava crescendo nas últimas semanas, motivo pela qual decidi fazer um breve guia tratando do histórico do conflito para a newsletter O Mundo Está Uma Loucura.
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A rapidez do conflito impede de aprofundamentos históricos de um conflito de décadas, mas permite um panorama geral das complexidades que envolvem a região da Caxemira e as tensões entre Islamabade e Nova Délhi.
A origem do conflito
Como é sabido, o império britânico colonizou boa parte da região que chamamos de subcontinente indiano, que reúne atuais Índia, Paquistão, Butão, Nepal, Bangladesh, Sri Lanka e Maldivas.
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Índia, Paquistão e Bangladesh, em específico, foram as partes mais relevantes para os conflitos fronteiriços nos anos subsequentes ao fim do Raj Britânico.
Antes do colonialismo britânico, essas regiões tinham governos e populações diferentes entre si. Contudo, o norte da Índia teve por séculos um governo islâmico — o chamado Império Mugal — e o sul tinha governos hindus — nomeadamente a Confederação Maratha. Isso é uma generalização, porque existiam territórios ainda controlados por outras galeras. Vale lembrar que estes três países somados tem 50% do território brasileiro, o que é coisa para cacete, mas com muuuuuito mais gente.
Durante as trágicas décadas do colonialismo britânico na Índia, os ingleses aprofundaram diferenças religiosas entre as populações, utilizando as religiões e o sistema de castas no melhor jeito dividir para dominar. Tanto muçulmanos como hindus lutaram, inclusive juntos, para acabar com a dominação colonial.
Segundo o censo de 1941, a minoria da população do território controlado pelos britâicos era muçulmana (25%), com 70% de hindus e outras minorias compondo os 5% restantes.
Como todo mundo sabia que o colonialismo ia acabar, o grande debate seria como governar esta terra.
Mahatma Gandhi, do partido Congresso Nacional Indiano, era um defensor da solução de um grande estado, que reuniria todas as religiões.
Já outras figuras, como o Ali Jinnah (muçulmano e pai do Paquistão) e o Sarvarkar (hindu) defendiam uma separação religiosa entre um Paquistão Muçulmano e uma Índia Hindu.
Em 1947, a Inglaterra saiu da Índia depois de a situação se tornar insustentável, em especial por conta do pós-Segunda Guerra Mundial e fome de Bengala, e pouco fez por uma transição suave para a independência daqueles povos.
A liderança do Congresso Nacional Indiano, Jawaharlal Nehru, tentou segurar a Índia junta, mas as discussões com Ali Jinnah acabaram desfazendo este sonho, e então, foi acordado que o território seria dividido.
O problema é que ninguém sabia direito como. Então, foi chamado um advogado britânico para traçar uma linha num mapa de um lugar onde ele nunca tinha ido. Essa foi a linha Radcliffe, que, na prática, cortou Índia e Paquistão ao meio.
A região entre Índia e Paquistão é a chamada planície Indo Gangética, uma das regiões mais densamente populadas do mundo porque tem dois rios absolutamente essenciais para agricultura da região, que são o Ganges e o Indo.
Neste mapa dá pra ver claramente isso. Perceba que tem gente para cacete na fronteira entre Índia e Paquistão. E foi baseado em censos desatualizados e na religião das pessoas que se fez o corte entre Índia e Paquistão (e Bangladesh, que também se tornou parte do Paquistão, naquele momento).
O produto disso foi uma das maiores tragédias da história da humanidade, a Partição da Índia.
Cito os dados de um artigo da New Yorker:
No Punjab e em Bengala – províncias adjacentes às fronteiras da Índia com o Paquistão Ocidental e Oriental, respectivamente – a carnificina foi especialmente intensa, com massacres, incêndios criminosos, conversões forçadas, raptos em massa e violência sexual selvagem. Cerca de setenta e cinco mil mulheres foram violadas e muitas delas foram desfiguradas ou desmembradas. Em 1948, quando a grande migração se aproximava do fim, mais de quinze milhões de pessoas tinham sido desenraizadas e entre um e dois milhões estavam mortos. A comparação com os campos de extermínio não é tão absurda quanto pode parecer.
Então foi assim que esses países celebraram sua independência: com uma carnificina generalizada.
Jammu e Caxemira
O Radcliffe pode ser responsável por uma série de conflitos ao longo de todo o território, mas o problema da Caxemira não foi necessariamente dele.
A região era um reino autônomo subserviente ao império britânico e, quando rolou a independência, o Marajá Singh não sabia para que lado ia. Isso era 1947.
O Paquistão recém formado e indepedente encheu a região de tropas, e o Marajá Singh não gostou, então ele decidiu ir pro lado da Índia, que encheu a região de tropas.
A consequência era óbvia: a Primeira Guerra Indo-Paquistanesa começa em outubro de 1947 e vai até 1 de janeiro de 1949. Milhares de mortos com nenhum vencedor claro. Se estabelece uma linha temporária de cessar-fogo que rege a divisão, parcialmente, até hoje. É o tracejado no mapa que vocês veem abaixo, que também mostra a divisão religiosa entre os países:
Então temos uma região de maioria muçulmana dividida ao meio entre um estado muçulmano e outro estado teoricamente laico, o indiano.
Isso significa que, a partir de 1949, os moradores da Caxemira controlada pela Índia serão cortejados pelas autoridades paquistanesas a fazer uma luta de insurgência contra o governo indiano.
Desde 1949, então, grupos políticos pró-Paquistão vão ter uma forte influência e comandar uma série de ataques contra as forças indianas.
A Índia reprime com força, tornando aquela uma das regiões mais vigiadas de todo o país, com uma forte vigilância a quaisquer distensões políticas.
Em 1965, uma intensa rebelião insurgente começa na Caxemira Indiana, o que leva a uma repressão e à Segunda Guerra Indo-Paquistanesa, que dura um mês e mantém o status quo da região com “vitória” indiana ao conter a insurgência.
Em 1971, ocorreu a Guerra de Independência do Bangladesh, do outro lado do subcontinente indiano, que é história para OUTRO DIA.
Contudo, essa luta de independência causou um conflito paralelo na Caxemira, quando Índia e Paquistão avançaram em alguns territórios e perderam outros, o que gerou a Linha de Controle, que funciona como fronteira de facto até hoje, estabelecida em 72.
Vários anos de violação de cessar-fogo, insurgências e contra-insurgências se seguiram ao longo dos próximos anos, até a guerra de 1999, a Quarta. Essa durou menos e foi mais contida, porque os dois países já tinham bombas nucleares.
Em resumo, nunca houve paz e estabilidade na região. A situação piorou a partir de 2018, quando o governo indiano retirou o status de região autônoma de Jammu e Caxemira e transformou o local em um estado, o que foi malvisto do lado paquistanês do conflito.
Outras questões internas
Da política indiana
O país é multipartidário, com vários partidos regionais, mas se divide em um cisma ideológico desde antes da independência, sob o seguinte dilema: a Índia é um país laico ou um país hindu? O laicismo é representado na figura de Gandhi e do Congresso Nacional Indiano, que governou o país de de 1947 até 1977, e depois de 1980 até 1996, e depois de 2004 até 2014. Entre 77-79, 96-2004 e desde 2014, foi governado pelos hinduístas, hoje representados pelo BJP (Bharata Janatiya Party, o partido do "Povo Indiano").
O Partido do Povo Indiano tem uma visão mais conservadora sobre questões religiosas e é mais liberal na economia. O partido tem ligação íntima com a milícia RSS, que defende a implementação do hinduísmo como religião oficial da Índia e possui forte inspiração nazi-fascista.
O Congresso Nacional Indiano é um partido de centro-esquerda, defensor do socialismo democrático e do laicismo do Estado Indiano, apesar de ter sido duramente criticado durantes os anos Indira Gandhi por conta de sua forte repressão aos comunistas e aos movimentos islâmicos na Caxemira. Atualmente, é liderado pelo Rahul Gandhi, que não é descendente do Mahatma, mas da Indira.
Ambos os partidos, contudo, compartilham visão parecida ou similar sobre a situação da Caxemira, considerada uma questão de segurança nacional para a Índia.
Nos tempos da Guerra Fria, a Índia forjou relações íntimas militares com os soviéticos, que ajudaram o país com fornecimento de armas e até tecnologia nuclear para realização do seu projeto nuclear. Hoje, a Índia ainda é amicíssima dos russos, mas tenta fazer um equilíbrio e balanceamento com os Washington também.
Com a China, existem questões territoriais em disputa, o que já levou às guerras sino-indianas no passado, nomeadamente sobre diferentes regiões no Himalaia. A raíz do conflito é colonial, e muito bem explicada neste artigo da Iara Vidal. A Índia exerce forte influência em Sri Lanka, Bangladesh, Nepal, Butão e Maldivas.
Da política paquistanesa
No Paquistão, a situação é tripartite. O país tem três grupos políticos majoritários: um é a Liga Muçulmana (do Ali Jinnah, pai do país), o outro é o Partido Popular (centro-esquerda, liderado pela família Bhutto) e o outro é o Tehrek-e-Insaaf (do Imran Khan). Vamos lá:
A Liga Muçulmana é o partido dos militares, que governaram o país com mão de ferro durante os anos da Guerra Fria. Eles utilizaram o apoio soviético a Índia para consolidar um regime forte com apoio dos EUA e da China.
O Partido Popular é o partido de centro-esquerda que ganhou força com Ali Bhutto. Ele governou o país entre 1973 e 1977, com um programa de nacionalizações e laicização do estado, o que culminou em um golpe de Estado. Ele foi enforcado pelos militares naquele mesmo ano. Dez anos depois, em 1988, sua filha, Benazir Bhutto ganhou as eleições e se tornou a primeira mulher a comandar um estado de maioria muçulmana no período contemporâneo, mas não conseguiu governar porque milicaiada é osso.
Voltou ao poder entre 1993 e 1996, e depois foi culpada por "corrupção". Em 2007, foi anistiada e voltou ao Paquistão. Em 27 de dezembro, enquanto fazia um comício, um ataque suicida. A responsabilidade foi reclamada pela Al Qaeda.
Depois de alguns anos de governo do Partido Popular, ascendeu ao poder o Tehrek-e-Insaf, do Imran Khan, que é tipo o Cristiano Ronaldo do Paquistão. Ele foi um jogador de críquete muito famoso e venceu as eleições de 2018 com uma plataforma antissistema, mas foi jogado na cadeia também sob acusações de corrupção.
Nas eleições de 2024, ele conseguiu quase a maioria dos votos para o seu partido, mesmo impedido de concorrer e com sua legenda barrada. Para formar governo, a Liga Muçulmana e o Partido Popular se juntaram, em uma união estilo Lula-Alckmin, para tentar frear essa nova força política esquisita representada pelo Imran Khan.
O Paquistão possui estreitos laços com EUA, Arábia Saudita e China. Além disso, possui influência forte no Afeganistão, e boas relações com Irã e Turquia, aliados de longa data.
Questões geoestratégicas e socioculturais
A questão territorial da Caxemira possui dois agravantes: sua importância geoestratégica, afinal, é um lugar onde passam rios importantes, como o Jhelam, que acaba sendo o principal fator. Controlar as águas que abastecem Índia e Paquistão pode afetar as enormes populações agrárias de ambos os países, e por isso Nova Delhi ordenou fechar a torneira dos rios que irrigam o vizinho muçulmano.
Além disso, a questão das famílias é forte: diversas populações foram cortadas ao meio desde a primeira guerra indo-paqusitanesa e têm que trasladar diariamente entre Índia e Paquistão para visitar seus familiares que estão do outro lado da fronteira.
O assunto assunto rende mais um monte de coisas que podem ser abordadas posteriormente, como a questão dos sikhs no Punjab, os movimentos separatistas do Balochistão, os laços estratégicos entre Paquistão e China, e a própria questão de Bangladesh.
A versão integral do texto está na newsletter O Mundo Está Uma Loucura.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum
**Yuri Ferreira é jornalista