IA do Job, masculinidade frágil e a mulher que nunca existiu - Por Thaís Cremasco
Enquanto a inteligência artificial cria parceiras perfeitas para homens que não suportam mulheres reais, seguimos lutando pelo direito de existir fora do script.
Ela chora na roça, pede um pix, manda um áudio doce, posta vídeos descabelada com cara de “vida real”. Mas não existe. Foi gerada por um homem. Criada por código, treinada com IA, vestida com o figurino da mulher ideal que habita o imaginário masculino: sensível, bonita, dependente, carente. A “IA do Job” é mais do que um golpe afetivo digital — é o espelho de uma masculinidade frágil, incapaz de lidar com mulheres reais, e por isso disposta a pagar por uma ilusão programável.
A “IA do Job” — nome informal dado ao uso de bots femininos para gerar engajamento, afeto simulado e, muitas vezes, lucro — escancara mais do que um novo mercado. Expõe como, mesmo na era da tecnologia de ponta, o ideal feminino continua sendo um projeto masculino. Essas mulheres não existem. Foram inventadas. E são consumidas como se fossem reais, porque foram calibradas para isso. A linha entre o real e o artificial se dissolve, mas o fetiche masculino continua intacto: a mulher idealizada, obediente, emocionalmente acessível e sexualmente servil.
Enquanto mulheres seguem sendo acusadas de interesseiras por buscarem afeto, segurança e reciprocidade, homens gastam fortunas com um avatar submisso que nunca diz “não”, nunca pede nada que não possa ser convertido em dinheiro, e nunca os confronta com a realidade do afeto humano: a complexidade. Nesse mercado de simulações afetivas, o feminino é um produto customizável — e a carência emocional masculina virou commodity.
O feminino que agrada nunca foi real — nem no corpo, nem no código
Ao longo da história, o feminino aceitável sempre foi um projeto moldado fora de nós. Seja pela contenção física dos nossos corpos, pelo controle moral dos nossos desejos ou pela domesticação psicológica das nossas vontades, fomos sistematicamente ensinadas a caber no que os homens suportam. Na virgindade exigida, no tom de voz rebaixado, na fragilidade performada, no silêncio diante da violência — tudo foi coreografado para não ferir a masculinidade frágil. A inteligência artificial não rompe esse ciclo: ela apenas o automatiza.
A “IA do Job” é a atualização digital do mesmo sistema que historicamente nos mutilou — por dentro e por fora. Agora, o feminino ideal é criado em laboratório: docilidade programada, pobreza estética calibrada, afeto simulado. O que antes se conquistava com castigos, normas e violências, hoje se alcança com código. Mas a essência do controle permanece: a mulher ideal não é a que vive — é a que obedece.
Essa simulação do feminino — que seduz, engaja e vende — é apenas mais uma camada de uma longa história de apagamento da mulher real. E se ainda somos vistas como demais (intensas demais, críticas demais, livres demais), talvez seja porque a única versão tolerada de nós sempre foi uma ficção feita para o consumo masculino.
Enquanto eles amam fantasmas, seguimos lutando para existir
Enquanto a IA do Job ensina homens a amarem fantasmas, nós seguimos tentando existir fora dos moldes — nos espaços de poder, nos relacionamentos, nas ruas, no Direito, e agora, também, na tecnologia. Reivindicar o direito de ser complexa, viva, imperfeita e presente é hoje um gesto radical. Porque a liberdade feminina, no fim das contas, nunca foi compatível com o desejo de controle masculino — nem na carne, nem no algoritmo.
A mulher perfeita é uma invenção masculina
Essas “namoradas de IA” não apenas alimentam a solidão masculina: elas oferecem uma falsa cura. Uma muleta emocional que perpetua a ideia de que a mulher ideal deve ser moldada — não vivida em sua inteireza. Por trás das vozes delicadas e rostos angelicais, há homens programando uma ideia de mulher a partir do medo que têm de mulheres reais. Medo de ouvir um “isso me machuca”, um “não gosto disso”, um “quero mais de você”.
O que vemos não é avanço neutro — é a repetição automatizada da lógica da dominação emocional: a mulher como serviço, como interface, como consolo.
E nós, mulheres, o que temos a ver com isso?
Tudo. Porque esse novo mercado de ilusões também nos afeta. Cria expectativas irreais sobre como devemos ser. Impõe mais um modelo de feminilidade aceitável: que chora com delicadeza, que é pobre mas sexy, que nunca está ocupada demais, que responde rápido, que ama com entrega automática — sem exigência, sem dor, sem presença.
Mas nós não somos isso. Nunca fomos. E não aceitaremos ser.
A libertação é sair do script
Se a IA do Job nos ensina algo, é que precisamos urgentemente nos libertar da versão de nós que os homens querem consumir. Porque ela nunca foi feita por nós. A verdadeira subversão talvez seja viver com carne, caos e contradição. Dizer não. Desagradar. Ser complexa. Ter tempo ruim. Errar. Ser livre.
Enquanto eles criam IAs para escapar do feminino real, talvez o nosso maior gesto político seja reafirmar o direito de sermos reais — mesmo quando isso significa não caber no script.
Quando a tecnologia reproduz opressão, o Direito não pode se calar
O fenômeno das “IAs do Job” não é só excentricidade digital ou nicho de marketing emocional. É uma operação simbólica e econômica que reifica — transforma em coisa — o feminino. Uma prática que simula relações humanas sem consentimento, reciprocidade ou responsabilidade afetiva. A mulher ideal, moldada pela IA, é a continuação algorítmica do controle masculino sobre o afeto.
Do ponto de vista jurídico, o tema vive num limbo ético e normativo. A LGPD não foi feita para simulações emocionais. O Marco Civil da Internet tampouco contempla os vínculos falsificados por algoritmos. Mas as implicações estão aí:
- A manipulação de imagens e vozes femininas pode violar direitos de personalidade, imagem e voz, especialmente quando se usa material real como base.
- A criação de vínculos falsos com pessoas emocionalmente vulneráveis pode configurar abuso, estelionato afetivo, ou até dano moral.
- O uso da IA com finalidade de lucro emocional pode esbarrar em publicidade enganosa, fraude e responsabilidade civil.
E há um ponto ainda mais estrutural: não se trata apenas de regular a IA — mas de perguntar quem está programando o mundo, com quais valores, e a serviço de que sistema. O feminismo precisa ocupar também esse debate técnico, os conselhos regulatórios, os algoritmos e os tribunais.
A IA do Job parece o futuro, mas é o passado com nova embalagem. Um passado onde mulheres eram moldadas para agradar, calar, curar e servir. Agora, esse molde é replicado com a frieza de um código que não ama, não sofre, não escuta e não se responsabiliza.
Talvez a pergunta não seja o que a IA pode fazer por nós, mas o que estamos permitindo que ela faça com a nossa humanidade. E se as mulheres reais — de carne, contradição e coragem — não couberem nesse novo mundo, então é hora de reprogramá-lo.