Nem tudo que sobe ao palco é arte – Por Thais Cremasco
O problema não é só o Léo Lins, é a justiça que chegou tarde
A condenação do humorista Léo Lins a mais de 8 anos de prisão por discurso de ódio tem provocado aplausos e indignações em todas as direções. Mas, antes de comemorar a sentença como um final feliz, precisamos parar e perguntar: a prisão dele resolve o problema que ele criou? Ou será que chegamos tarde demais e agora lidamos com algo ainda mais preocupante?
Porque, sejamos honestas: prisão não é solução mágica para conflitos sociais. E não é difícil perceber que, nesse caso, o tempo que a Justiça levou para agir permitiu que algo maior se formasse. Enquanto instituições discutiam limites e liberdades, Léo Lins seguia fazendo shows, monetizando a violência e construindo uma base de fãs que vê no discurso dele algo “normal”, “corajoso” — até “artístico”. E isso talvez seja mais perigoso do que ele próprio.
A arte tem liberdade, mas também tem limite
Nenhuma democracia sólida existe sem liberdade de expressão. Mas liberdade de expressão não é permissão para agredir, humilhar ou perpetuar discursos que estimulam a violência contra grupos historicamente oprimidos.
A arte tem, sim, um papel provocador. Pode — e deve — incomodar, questionar e expor o que está errado. Mas isso não significa que tudo se justifica sob o manto da arte. A criação artística, embora livre, não paira acima dos pactos sociais que regem a vida em comunidade.
No Brasil, a arte pulsa, provoca, desafia — mas ela também responde a um compromisso ético com a Constituição, que consagra a liberdade de expressão ao mesmo tempo em que repudia a incitação ao ódio, à violência e à opressão. Não existe vácuo legal onde a “piada” pode tudo, nem zona de exceção em que o artista esteja autorizado a agredir impunemente. A arte é um território potente, mas não soberano — e, numa democracia, até o palco tem chão jurídico.
O silêncio também tem autoria
A lentidão da Justiça permitiu que Léo Lins seguisse fazendo exatamente o que faz: transformando o palco em trincheira de preconceitos. Por anos, ele usou o microfone para propagar ideias misóginas, pedófilas, racistas, machistas, homofóbicas, gordofóbicas — zombando de afrodescendentes, africanos, mulheres, crianças, pessoas com deficiência, indígenas, pessoas gordas, pessoas pobres, LGBTQIA+.
A lista de alvos é quase tão extensa quanto a indiferença institucional que o cercou. Nada aconteceu. Nenhuma responsabilização efetiva, nenhum limite imposto, nenhum freio real. O silêncio do Estado foi combustível. Deu a ele, e à sua plateia, a sensação de que tudo era permitido. Que humilhar era um estilo. Que o ódio era opinião. Que transformar dor em piada era liberdade. E que a crueldade, travestida de “humor”, era uma forma legítima de existir.
Justiça lenta também é injustiça
A pena veio, mas tarde demais. E quando a Justiça tarda, ela não apenas falha em proteger, ela permite que o dano se alastre. Porque, enquanto o sistema engatinha, os algoritmos correm. O discurso de Léo Lins foi amplificado, curtido, monetizado. Influenciou. Criou legiões. Normalizou o intolerável.
O estrago feito não termina com a prisão dele. O estrago continua nos milhares de seguidores que agora se sentem “vítimas da lacração”, “censurados pela ditadura do politicamente correto” quando, na verdade, sempre foram cúmplices de um projeto violento.
Se a Justiça tivesse sido célere, talvez o recado tivesse sido outro. Talvez tivéssemos conseguido, como sociedade, impedir que tanta gente confundisse ódio com opinião, preconceito com liberdade, humilhação com piada.
O que é arte — e o que definitivamente não é
A arte é uma linguagem da liberdade, mas não uma licença para o abuso. Ela nasce do conflito, da imaginação e da coragem de confrontar o que oprime, não de repetir violências que já mutilam cotidianamente corpos, memórias e subjetividades.
Arte é o que nos empurra para pensar, para sentir, para transformar o mundo, mesmo quando desconfortável. Mas, para ser arte, ela precisa dialogar com a vida, e não desprezá-la.
Foi arte quando Abdias do Nascimento criou o Teatro Experimental do Negro. Quando Lina Bo Bardi desenhou espaços para o povo. Quando Elza Soares cantou que a carne mais barata do mercado era a carne negra. Arte não é o riso fácil sobre a dor alheia, é a coragem de fazer o público rir e, ainda assim, pensar.
A comédia que agride quem já sangra não é ousadia: é só covardia performada de microfone em punho.
Quando um comediante usa o microfone como arma para violentar pessoas, como fez Léo Lins, ele não está criando. Está repetindo o que o patriarcado, o machismo, o racismo, o eurocentrismo, o capitalismo desmedido gritam há séculos: que o sofrimento das pessoas é irrelevante, que a dor pode ser entretenimento. Isso não é arte. Isso é barbárie travestida de stand-up.
Mais perigoso que o réu são os aplausos que ele recebeu
Léo Lins foi condenado, mas o desafio continua. A luta é para que a arte continue livre e, ao mesmo tempo, seja responsável. A luta é para que a Justiça chegue na hora certa, e não quando o estrago já está feito. A luta é para que a sociedade pare de normalizar a violência simbólica contra mulheres, pessoas negras, indígenas, com deficiência, LGBTQIA+ e qualquer outro grupo vulnerável.
E, principalmente, a luta é para que nenhuma forma de arte seja usada como cortina para a barbárie. Que nunca mais a comédia sirva para mascarar o ódio, o microfone para amplificar a violência, o palco para sacrificar a dignidade de quem já é alvo diário de exclusão.
A verdadeira arte não apaga pessoas, ela ilumina.
Não silencia, ela denuncia.
Que a gente siga lutando para que o riso não seja cúmplice da injustiça, mas aliado da transformação.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.