A aurora conservadora e o culto cristão da violência

No Brasil, a aurora conservadora, que se esforça em firmar a ideia de que há um crepúsculo progressista, alia a guerra, ou melhor, o discurso violento, ao discurso religioso

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Em última pesquisa realizada pelo Ibope, foi divulgado, no O Globo, que 52% dos católicos e 44% dos evangélicos defendem o slogan “bandido bom é bandido morto”. No ano passado, 73% dos evangélicos discordavam da frase e muitos acreditavam na ressocialização do preso.1 A proporção de cariocas que passaram a defender a tese também aumentou de 37% para 50%...

O cristianismo nasceu como uma religião pacífica. No entanto, quando a Igreja se estabeleceu nos finais do Império Romano e, definitivamente, ao longo do período medieval, a relação entre religião e militarismo retornou.2 Foi por causa de uma visão antes da batalha que o imperador romano Constantino se tornou cristão. As diversas invasões sofridas pela Europa durante a Idade Média, por seu turno, fez com que a Igreja sacralizasse a guerra inventando, inclusive, santos guerreiros, como São Jorge. Enfim, o cristianismo quando se apoderou do poder, lançou mão de métodos cruéis para manter a sua posição.

Hoje, no Brasil, a bancada evangélica é aliada a bancada da bala. Uma característica, contudo, que não se resume apenas ao contexto brasileiro. Nos Estados Unidos, uma Igreja protestante – de maioria branca – abençoa os fuzis de seus fiéis chamando-os de “cajado de ferro”. Além disso, cabe lembrar que essa é uma questão que está para além das religiões cristãs. As outras religiões que pregavam a paz foram, também, diga-se de passagem, disseminadas entre povos guerreiros, como o budismo, religião oficial dos samurais durante o feudalismo japonês.

Entretanto, o discurso nacionalista, fundamentado na guerra, precisou herdar uma retórica de caráter sacral para se estabelecer, e, para cristalizar ainda mais a sua eloquência, despertou antigos elementos religiosos. Assim aconteceu com o nazismo, onde os intelectuais de Hitler recuperaram as religiões pré-cristãs. O que se repetiu com o xintoísmo no Japão durante a Segunda Guerra Mundial.

São raros os exemplos em que grupos religiosos usaram o pacifismo para conseguir algum objetivo político. Podemos lembrar de Martin Luther King e Mahatma Gandhi, ambos assassinados. Popularmente, dos anabatistas dos tempos das Reformas, aos fanáticos de Canudos e os do Contestado, a violência sempre foi o recurso usado por seitas religiosas para alcançar um objetivo político.

Portanto, não há nada de incomum ou ilegítimo na relação entre o cristianismo, ou entre qualquer outra religião, e a violência. É como dizia a bela canção de John Lenon: imaginar um mundo sem violência é imaginar um mundo sem religião. Isso porque a guerra precisa ser sacralizada, somente desse jeito consegue causar o mesmo efeito que a religião provoca nas pessoas.

Por outro lado, um discurso violento não pode ser puramente violento, precisa pertencer a um princípio maior e, jamais, violá-lo. Em 1989, Jerry Falkwell, líder da Maioria Moral dos EUA, dizia que “A Bíblia não faz qualquer crítica a armamentos”.3 Isso leva o deputado federal e PM, Capitão Augusto, a afirmar: “As frentes de segurança pública e a evangélica correm juntas aqui. Nós temos os mesmos valores. A gente se ajuda realmente, não integramos [a frente evangélica, da qual Augusto também faz parte] apenas com o nome, para constar, mas para efetivamente ajudar em todos os projetos que eles estão apoiando”...4 O deputado Jair Bolsonaro, o grande defensor do porte de armas no Brasil, ao se intitular “o Messias” (assim como o fez Hitler)... E o reverendo Hyung Jin Moon, nos EUA, apropriando-se da retórica da ameaça, ao afirmar: “Cada um de nós deve usar o poder do ‘cajado de ferro’ não para armar ou oprimir, como foi feito em reinos satânicos deste mundo, mas para proteger os filhos de Deus”.5

Uma chance para o amor Bertolt Brecht escreveu para uma de suas peças: “A guerra é como o amor, sempre encontra um jeito”. Uma frase curiosa que pode retratar a relação dos seguidores de um ser sagrado, que tanto fez pelo amor, com a guerra. Eles sempre encontraram um jeito de justificar a guerra, em muitos casos, em nome do amor. No Brasil, a aurora conservadora, que se esforça em firmar a ideia de que há um crepúsculo progressista, alia a guerra, ou melhor, o discurso violento, ao discurso religioso. Ora contra o imigrante, ora contra as esquerdas e as minorias etc.. vai se alastrando pelos populares através das redes sociais assim como um vírus, que não prejudica os software, mas contamina os seus usuários. Para os conservadores, o discurso da violência é a principal estratégia legitimadora. São incapazes de se espelharem no amor de Cristo e preferem a guerra que ergueu o cristianismo a patamares imperialistas, o que conseguiu, sem dúvida, fazer com que essa religião permanecesse dominante por tanto tempo no mundo ocidental. Cristo que negou a guerra da tradição judaica e se colocou como vítima, como o sacrificado no lugar daquele que recebe o sacrifício, é usado novamente para justificar a violência, através da mesma retórica pela qual o seu Evangelho se firmou no Ocidente: a da ameaça. E com isso, ou seja, com o argumento de que se está preservando os valores tradicionais e combatendo a degenerescência social (a criminalidade urbana e política), os reacionários se colocam no lugar do caçador, dos que sacrificam o gado, do animal predador que, na iconografia medieval, foi associado ao próprio Satanás, como o dragão e a serpente, vitimizando os desafortunados. Quem sabe um dia, o cristianismo primitivo, aquele que Engels dizia se aproximar do movimento operário de seu tempo, possa ser resgatado pelos cristãos, de modo a dar uma chance para o amor?

1https://oglobo.globo.com/rio/cariocas-rejeitam-ideia-de-que-bandido-bom-bandido-morto-21164766

2 A maior parte das conclusões e asserções sobre a relação entre religião e militarismo vem da obra: EHRENREICH, Barbara. Ritos de sangue: um estudo sobre as origens da guerra. Rio de Janeiro: Record, 2000.

3EHRENREICH, Barbara. op. cit.. p. 227.

4https://exame.abril.com.br/brasil/biblia-boi-e-bala-um-raio-x-das-bancadas-da-camara/

5https://oglobo.globo.com/mundo/igreja-americana-abencoa-fuzis-como-cajados-de-ferro-22444409