NAZISMO

Discurso anti-esquerda de Bolsonaro é o mesmo dos nazistas, aponta historiador alemão

À Fórum, o historiador alemão Thilo F. Papacek desconstrói a falácia de Bolsonaro de que o nazismo era um movimento de esquerda, explica as origens do termo "nacional socialismo" no partido de Hitler e revela que na Alemanha o presidente brasileiro é visto como um político de extrema direita

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O presidente Jair Bolsonaro chamou a atenção do mundo todo esta semana e fez, mais uma vez, o Brasil passar vergonha no âmbito internacional: ele afirmou, logo após visitar o Museu do Holacausto em Israel, que o nazismo na Alemanha de Hitler consistia em um movimento de esquerda.

A sua tentativa de demonizar a esquerda com este tipo de falácia gerou, inclusive, reações mais diretas em algumas partes do mundo. Partidos políticos alemães chegaram a se manifestar contra as declarações do presidente brasileiro e até mesmo um abaixo-assinado online internacional exige uma retratação do capitão da reserva por distorcer a história.

Para analisar esse tipo de retórica de Bolsonaro - e não, necessariamente, para explicar o porquê o nazismo não é de esquerda, já que este deveria ser o entendimento comum - Fórum conversou com Thilo F. Papacek, professor alemão e doutor em Históra pela Universidade Livre de Berlim.

Na opinião de Papacek, esse tipo de declaração de Bolsonaro vem como uma forma não só de distrair as pessoas com relação às políticas desastrosas encampadas em seu governo, como também de se blindar das acusações, "também internacionais", de ser um fascista.

"Ele é da extrema direita e com seu discurso de ódio ele é acusado de liderar um movimento político semelhante ao nazismo – e com boas razões. Com essa afirmação, acho eu, ele tenta se defender um pouco como uma criança: 'Não, VOCÊ é o nazi!'", compara.

O historiador revela, contudo, que esse tipo de declaração de Bolsonaro não é um caso isolado. Há também uma extrema direita em ascensão na Alemanha que utiliza exatamente da mesma estratégia: dizer que o nazismo foi de esquerda com o argumento de que o nome do partido nazista continha o termo "nacional socialismo".

"Quase todo dia tem algum político da AfD (partido de direita alemão) polemizando contra a esquerda, e eles frequentemente usam essa associação 'Nazismo é da esquerda', o que é um absurdo para historiadores, mas muitos alemães da direita gostam disso: assim eles se defendem de serem chamado de nazistas", conta.

Na entrevista, porém, Papacek explica que o nazismo era, por essência, anti-comunista e que a adoção do "nacional socialismo" no nome foi uma maneira de conquistar trabalhadores para o partido e afastá-los da esquerda. Ao longo da desconstrução da retórica do presidente brasileiro, o historiador alemão diz, ainda, que em seu país há conhecimento sobre quem é Bolsonaro e que lá ele é associado à extrema direita. "Mais radical que Trump", pontua.

"Esse discurso de Bolsonaro de 'limpar o país' e 'fazer exorcismo' contra a esquerda, sim, chega até aqui. E esse tipo de discurso existia no governo da Alemanha também, entre os anos de 1933 a 1945 [período do goveno nazista de Hitler]. Nesse sentido, Bolsonaro é muito mais semelhante aos nazis", sacramenta.

Confira, abaixo, a íntegra da entrevista.

Fórum - Qual a avaliação que você faz, como cidadão alemão e historiador, dessa declaração do presidente Jair Bolsonaro de que o nazismo foi um movimento "de esquerda" na Alemanha?

Thilo F. Papacek - Eu acho que Bolsonaro fez essa declarações para distrair as pessoas com relação à sua política e para se defender de acusações – também internacionais – de ele ser fascista. Isso é muito claro para mim. O nazismo histórico era uma reação ao comunismo – sua intenção era anticomunista por definição. Adolf Hitler e os seus correligionários eram anti-marxistas declarados. Depois da revolução na Rússia de 1917, e da revolução na Alemanha de 1918, a possibilidade de a Alemanha virar socialista era muito real – e isso provocou uma violenta reação da extrema direita (muito mais violenta que tudo o que a esquerda fez durante a revolução de novembro de 1918). Grupos paramilitares – os "freikorps" – lutavam com absoluta brutalidade contra a esquerda nos anos 1919-1923; esses grupos eram a origem do partido nacional-socialista. Os nazis entenderam que, para combater a esquerda, tiveram que organizar um movimento de massa, que integrasse parte dos trabalhadores. Por isso chamavam o seu partido de "Partido dos trabalhadores nacional-socialistas"; eles argumentavam, inclusive, que o "nacional-socialismo" era anti-capitalista. Mas não se deve deixar confundir por isso. Eles eram anti-marxistas e na verdade não tinham um conceito claro do que "capitalismo" de verdade era. Nos anos 1920, quando o nazismo era ainda um movimento político que não tinha chegado ao poder, eles tentavam construir um movimento trabalhista nacional-socialista, principalmente organizado na "Sturmabteilung", a SA. A ideologia era de "harmonizar as classes" – ao custo dos judeus. O historiador canadense Moishe Postone analisou esse "anti-capitalismo" dos nazis em seu famoso ensaio "Antissemitismo e nacional-socialismo". Em linhas muito gerais, Postone diz que o antissemitismo dos nazis era o seu "anticapitalismo" – os nazis faziam uma diferença entre o "capital alemão" (também chamdao "capital criador") que eles elogiam, e o "capital judeu" (também chamado "capital arrebatado"). Mas a esquerda – pelo menos a esquerda marxista – não faz essa diferença. Marx sabia que os capitalistas individuais são meras "máscaras" do capital. Os males do capitalismo para Marx não são consequência da maldade dos capitalistas, mas são consequência da estrutura do capitalismo mesmo. Mas os nazis inisistiram nessa diferença entre o "capitalista bom" (alemão) e o "capitalista mau" (judeu) fazendo basicamente dos judeus os bodes expiatórios para todos os males do capitalismo, com consequências absolutamente bárbaras, como todos sabemos. Essa loucura antissemita resultou no assassinato em escala industrial de seis milhões de pessoas, como sabemos. Assim, Bolsonaro não tem razão de chamar o nazismo de "esquerdista" porque o nazismo não era marxista, mas o nazismo era, sim, no seu próprio entender, "anti-capitalista". Agora, bem, se tratava de um anticapitalismo perverso e errado.

Fórum - Em algum momento no seu país você já presenciou alguém associando o nazismo à esquerda?

Thilo F. Papacek - Na Alemanha é geralmente aceito que o partido nazista era de direita e os comunistas, os social-democratas e outros representantes da esquerda se encontram entre as primeiras vítimas do nazismo. Mesmo assim, há vários exemplos de políticos conservadores que tentaram associar o nazismo com a esquerda. Um exemplo notável foi a Erika Steinbach, que era do ala da direita do partido conservador CDU (deixou o partido em 2017) . Em alguns tweets ela escreveu que o "Partido Alemão de trabalhadores nacional-socialista" era da esquerda porque levava as palavras "socialismo" e "trabalhadores" no nome. Isso foi em 2012 e foi um escândalo. Agora, com a ascensão do partido da direita "Alternative für Deutschland" (AfD – "Alternativa para alemanha"), declarações como aquela da Erika Steinbach são quase comuns e não chamam muita atenção. Quase todo dia tem algum político da AfD polemizando contra a esquerda, e eles frequentemente usam essa associação "Nazismo é da esquerda", o que é um absurdo para historiadores, mas muitos alemães da direita gostam disso: assim eles se defendem de serem chamado de nazistas. O discurso político na Alemanha mudou bastante; a AfD e Bolsonaro se aproximam muito nesse hábito de polemizar para provocar o oponente político. E não é por acaso que Erika Steinbach se aproximou da Afd; ela ainda não entrou no partido, mas trabalha na fundação política da AfD.

Fórum - Na sua opinião, por que um presidente latino-americano, em pleno ano de 2019, insiste em repetir falácias como a de que o nazismo é de esquerda? Acredita que seja uma ignorância ou um movimento intencional para criminalizar a esquerda?

Thilo F. Papacek - Eu não acho que se trata de uma ignorância. Com certeza essa afirmação de Bolsonaro se insere no seu discurso anti-esquerda. Mas ele realmente precisa dessa associação da esquerda ao nazismo para criminalizar a esquerda? Acho que não, no discurso de Bolsonaro a esquerda já é associada à criminalidade e à marginalidade há muito tempo. Eu acho mais provável que seja uma tentativa de distrair a população das acusações contra ele. Ele é da extrema direita e com seu discurso de ódio ele é acusado de liderar um movimento político semelhante ao nazismo – e com boas razões. Com essa afirmação, acho eu, ele tenta se defender um pouco como uma criança: "Não, VOCÊ é o nazi!"

Fórum - Como um cidadão alemão, que sabe das atrocidades do nazismo, enxerga o governo brasileiro hoje? Há uma noção na Alemanha de quem é Jair Bolsonaro?

Thilo F. Papacek - Durante as últimas eleições as mídias alemãs chamavam Bolsonaro de "Trump tropical". O Brasil não costumava a estar no foco das mídias alemãs. Com Bolsonaro isso mudou, e também a postura das mídias. Agora, se entende bem que Bolsonaro é muito mais radical que Trump. Por exemplo, a "Tagesschau" – que é o programa de notícias do canal público e o mais respeitado – começou de chamar Bolsonaro de "extrema direita" e, inclusive, publicou um texto no qual eles defendem essa decisão, explicando o que é extrema direita e porque esse termo é justificavelmente aplicado a Bolsonaro. A razão principal é o discurso de ódio. Ele representa um estilo político similar ao fascismo: ele quer abolir a política através do extermínio da oposição. A política democrática é a arte de negociar, a arte do compromisso. Bolsonaro não quer nem negociar e nem chegar a um compromisso, ele quer impor a sua política 100% , sem conceder nada à esquerda. E esse discurso de Bolsonaro de "limpar o país" e "fazer exorcismo" contra a esquerda, sim, chega até aqui. E esse tipo de discurso existia no governo da Alemanha também, entre os anos de 1933 a 1945... Nesse sentido, Bolsonaro é muito mais semelhante aos nazis. O que distingue Bolsonaro do nazismo e fascismo histórico é essa falta do discurso "anticapitalista" – Bolsonaro defende o capitalismo e com Paulo Guedes tem um superministro neoliberal. Alguns cientistas chamam esse estilo de política, que pretende liquidar a oposição política, de "ultra-política"; com esse termo você pode juntar tanto o nazismo histórico quanto um Bolsonaro, que é semelhante ao fascismo histórico, mas tem diferenças também. [O entrevistado indica este podcast sobre "ultra-política]

Fórum - Como historiador, acha que o presidente deve um pedido de desculpas por distorcer a história, principalmente de um assunto tão delicado?

Thilo F. Papacek - Antes de pedir desculpas aos alemães eu acho que Bolsonaro deve desculpas aos quilombolas do Brasil, aos indígenas e à comunidade LBGT que ele constantemente xinga e ameaça. E ele deve ao povo brasileiro esclarecer, com todo esforço, o assassinato de Marielle Franco e as ligações dos assassinos com comandantes na polícia, milícias e políticos. Isso é muito mais importante porque isso seria combater o fascismo atual. Pedir desculpas por algumas burrices que ele disse seria muito provavelmente só para chamar a atenção e distrair das atrocidades que o governo comete (por exemplo, na política ambiental). Seria nada mais que política simbólica.