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A farra dos militares: Uísque, picanha, bacalhau, Viagra. E a fatura é por nossa conta

O Brasil tem assistido atordoado às descobertas feitas nas contas de nossas Forças Armadas

Jair Bolsonaro com comandantes militares.Créditos: Presidência da República/Reprodução
Escrito en POLÍTICA el

O Brasil tem assistido atordoado às descobertas feitas nas contas de nossas Forças Armadas. Historicamente, militares têm regalias que não são conferidas aos pobres “paisanos”, como eles mesmos gostam de chamar o resto da população, que vive fora do universo murado e aquartelado da caserna. As recentes denúncias de que o dinheiro público vertido aos homens das armas vem sendo usado para comprar cortes luxuosos de carne, bebidas alcoólicas refinadas, remédios contra disfunção erétil, próteses penianas e gel lubrificante íntimo, entre outros itens nada bélicos, são apenas um novo capítulo na fatura dispendiosa enfiada goela abaixo do povo por generais insubordinados, golpistas e maculados pela politização extremista de um governo que, ao se olhar no espelho, vê o reflexo das medalhas e o aveludado dos quepes que já não enganam quase ninguém.

Há quase um ano e meio a reportagem da Fórum, por meio do site da Transparência e pelas mãos de fontes que seguem em anonimato por razões de segurança, vem noticiando as estrepolias e extravagâncias praticadas pelo alto comando do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, bem como pelos generais empoleirados no Ministério da Defesa, pasta que deveria unificar as ordens submetidas ao militares, e não servir de extensão para a fanfarronice praticada por oficiais que usam o dinheiro público para satisfação própria.

Os quartéis brasileiros começaram a, literalmente, “passar recibo” no início de 2021. Uma compra de R$ 15 milhões em leite condensado, feita em 2020 pelo Palácio do Planalto e em boa parte revertida às Forças Armadas, descortinou a farra com o erário público e lançou luz sobre as contas dos militares. O episódio mostrou ainda que existiam indícios de superfaturamento na compra do produto lácteo, já que latas foram adquiridas por R$ 162. Os generais se apressaram em dizer que havia um engano, que o valor referia-se a caixas com 27 unidades de leite condensado, mas o fato é que a desculpa não foi suficiente, já que os dados no portal da Transparência são claros, mostrando o valor unitário por lata de 395g.

Para coroar o papelão, o argumento técnico do Ministério da Defesa para comprar tanto leite condensado é de que o doce é altamente energético e seria diluído em água para consumo da tropa, que precisa de muitas calorias nos seus duros treinamentos. Praças e sargentos ironizaram a justificativa nas redes sociais dizendo que jamais tomaram o produto em suas atividades diárias. Por último, após o escândalo tomar conta do noticiário, o portal da Transparência saiu do ar na madrugada de 27 de janeiro de 2021. De acordo com a explicação oficial, foi “por razões técnicas.”

Praticamente no mesmo dia em que as compras insólitas de leite condensado explodiram nos jornais, uma padaria minúscula, com sede numa casa simples de Campo Largo, no Paraná, identificada no CNPJ como Estela Panificadora e Confeitaria Eireli, ficou famosa por vender R$ 29,8 mil em mercadorias para o Comando da Aeronáutica em Curitiba e R$ 11 mil para o Grupo de Artilharia de Campanha do Exército. A maior parte era de bombons, comercializados a R$ 89, embora não se saiba se por unidade ou caixinha. Um valor, de qualquer forma, absurdo.

A empresa identificada no CNPJ como “Saúde & Vida Comercial de Alimentos Eireli”, cuja dona é mãe de um oficial temporário do Exército, e seu sócio é um 3° sargento da força, teria participado da venda milionária de leite condensado para o governo Bolsonaro. O problema é que, embora sejam de Campos dos Goytacazes, no Rio, a sede da firma fica em Brasília, e para piorar a dona negou a transação.

A reportagem da Fórum mostrou ainda, na mesma semana e com exclusividade, que a Marinha do Brasil também faz compras para suprir o bico doce dos seus quadros. O portal da Transparência mostrou uma aquisição de 23.560 paçoquinhas de 20g, em embalagens individuais, por R$ 128.402, o que equivale a R$ 5,45 por cada doce, que custa entre R$ 0,50 e R$ 1 em qualquer mercearia do país. E não foi só isso. Uma aquisição de uma lata de spray de chantilly de 250g por R$ 533 indicou que muitos desses produtos podem estar superfaturados.

A empresa envolvida na venda do chantilly, a Principado de Astúrias Louças Ltda, com sede no Rio de Janeiro, questionou judicialmente a Fórum pela informação divulgada, afirmando que ela não dizia respeito a uma lata do produto, mas sim a uma espécie de garrafa “porta-chantilly” confeccionado em inox. Como os dados e informações do portal da Transparência foram claros quanto ao item, discriminando inclusive o peso e a composição do alimento, a Justiça julgou a reivindicação da firma vendedora do item à Marinha como improcedente, dando ganho de causa à Fórum, citando ainda o exercício do bom jornalismo praticado na reportagem e assegurando a livre atividade de imprensa ao repórter e aos editores do veículo.

Em plena pandemia, a gastança

Em 2020, o Brasil e o mundo enfrentavam o inferno da pandemia da Covid-19, empilhando corpos e fazendo das tripas coração para salvas vidas em hospitais sobrecarregados de gente entubada. Na vida intramuros dos quartéis, boa parte da verba destinada pela União aos militares para enfrentar o coronavírus era torrada com alimentos de luxo. Uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) denunciou o uso de quase R$ 500 mil desse montante para comprar picanha, file mignon, camarão e bebidas alcoólicas, como uísque e cervejas de primeira linha.

O TCU informou em seu relatório que o dinheiro veio da ação orçamentária “21C0 – Enfrentamento da Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional decorrente do Coronavírus", e que a aquisição das iguarias finas "além de não servir à finalidade a que se destina, a contratação desse tipo de insumo fere o princípio da moralidade previsto no art. 37 da Constituição Federal de 1988, o qual está diretamente relacionado à integridade nas compras públicas".

Parlamentares do PSB, encabeçados pelo deputado federal Elias Vaz (PSB-GO), chegaram a encaminhar uma representação à Procuradoria-Geral da República (PGR) exigindo apuração do episódio, e para entender por que a dieta dos militares precisa incluir 140 toneladas de lombo de bacalhau, 700 toneladas de picanha, 80 mil cervejas da melhor qualidade, garrafas de uísques 12 anos e conhaque de uva.

Promoções: Os marechais de canetada

Outra regalia dos militares diz respeito ao seu sistema de aposentadoria. Não é segredo para ninguém que as estrelas e títulos fazem a cabeça dos homens que ocupam os postos mais altos da hierarquia das forças militares brasileiras. No entanto, duas reportagens exclusivas da Fórum, que tiveram repercussão em todo o país e até no exterior, revelaram que 215 de nossos oficiais generais “da reserva” foram elevados ao posto de marechal, ou equivalentes.

Num primeiro momento, a informação causou estranheza, já que a tábua que verticaliza a hierarquia do Exército Brasileiro não prevê essa patente, exceto em tempos de guerra, assim como os postos de marechal do ar na Aeronáutica e de almirante na Marinha. Naturalmente o Ministério da Defesa correu para negar, e a desculpa, desta vez, foi a de que aquilo era só uma forma de promover os oficiais generais das três armas que chegaram ao ponto máximo da carreira. Ou seja, uma canetada para engordar suas aposentadorias.

Se não bastasse isso, a Fórum também descobriu que o coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, o mais monstruoso e notório torturador da Ditadura Militar (1964-1985), num cambalacho somente explicável e razoável para bolsonaristas e para seus colegas de farda, subiu quatro postos na hierarquia após sair da ativa para garantir uma “promoção” (e a aposentadoria, fixada em R$ 30.615,80) de marechal, deixada para suas duas filhas, já que o verdugo inclemente faleceu em 2015.

Virilidade, estética e mordomias... Com o dinheiro do povo

Depois de um histórico de muita pompa e circunstância na gestão de Jair Bolsonaro, os oficiais generais que deveriam proteger terra, mar e céu parecem estar preocupados com outras coisas. As denúncias desta semana apenas renovaram o arsenal de escândalos envolvendo os fardados, no entanto com uma perspectiva nova: a da virilidade e dos cuidados estéticos.

Um documento apresentado pelo deputado Elias Vaz (PSB-GO), que segue no encalço da caserna, revelou que os comandos de Exército, Marinha e Aeronáutica compraram, entre 2020 e 2021, um lote de 35 mil comprimidos de Viagra, o medicamento desenvolvido pela Pfizer há mais de 20 anos que revolucionou o tratamento da disfunção erétil. Os donos dos quartéis saíram correndo para justificar a constrangedora descoberta e disseram que a substância, o citrato de sildenafila, é também usada no tratamento de uma condição chamada Hipertensão Arterial Pulmonar (HAP). Nesses casos, a dose seria de comprimidos de 20mg, disseram os médicos especialistas, e o lotes adquirido pelos militares eram compostos por pílulas de 25mg e 50mg, a prescrição típica para impotência. Para deixar a desculpa ainda mais sem sentido, vários profissionais renomados da saúde informaram que a HPA é extremamente rara, acomete na maior parte das vezes pessoas de idade bem avançada e normalmente mulheres.

No turbilhão de absurdos, a gota d’agua que pôs um ponto final nas reais intenções dos oficiais ao comprarem esse medicamento foi a informação de que o Exército pagou R$ 3,5 milhões em 60 próteses penianas infláveis, importadas e de última geração, para serem entregues nos hospitais das Forças Armadas de São Paulo e do Mato Grosso do Sul. Os argumentos negando os fatos já se tornaram folclóricos, e não convencem ninguém. Na esteira surgiram ainda R$ 2,1 mil em remédios para a calvície, como Finasterida e Minoxidil, R$ 500 mil em botox, uma toxina que tem várias destinações médicas, assim como pode ser empregada em procedimentos estéticos, e R$ 37 mil em gel lubrificante íntimo para unidades militares sem relação com os serviços de saúde das forças.

Com a eleição se aproximando e a avidez com que grande parte dos brasileiros torce por mudanças, o que fica de dúvida na cabeça do contribuinte é: se de fato o governo extremista de Jair Bolsonaro for enxotado do Palácio do Planalto, como será possível colocar os militares que sitiaram seu governo de volta para dentro dos quartéis?

E o pior: eles de fato aceitarão uma vida menos nababesca, deixando de lado as fanfarronices assentidas por Bolsonaro?

Veremos.

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