SÉRIE ESPECIAL

O Futuro de Bolsonaro – “O caminho é longo. Será uma questão do tempo histórico”

Na 2ª parte da série sobre o futuro de Bolsonaro, juristas especializados em Direito Internacional são céticos e realistas sobre as ações em tribunais fora do Brasil, mas falam sobre as possibilidades

Créditos: Agência Brasil
Escrito en POLÍTICA el

Na segunda parte da série “O Futuro de Bolsonaro”, a reportagem da Fórum foi ouvir juristas especializados em Direito Internacional para saber quais são as reais possibilidades de o mandatário brasileiro responder por seus graves crimes em tribunais de fora do país. Na primeira parte, publicada segunda-feira (23), foram abordadas questões relacionadas aos problemas que Jair Bolsonaro terá com a Justiça do Brasil.

Dois temas são particularmente sensíveis para o autoritário líder de extrema-direita que pode estar em seus últimos meses à frente do Palácio do Planalto: a forma como trata os povos indígenas e a pandemia da Covid-19, que em 2020 e 2021 deixou mais de 660 mil mortos no país.

As duas causas já fizeram com que Bolsonaro fosse denunciado ao Tribunal Penal Internacional, sediado em Haia, nos Países Baixos. As denúncias, em si, não representam muita coisa. O caminho até uma condenação é muito complexo e extenso, além de levar em consideração variáveis que nem sempre estarão contra o acusado.

Para Gisele Ricobom, que é doutora em Direitos Humanos pela Universidade Pablo de Olavide, de Sevilha, na Espanha, e professora do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é necessário que se compreenda o que é a Justiça Internacional, como ela funciona e qual o histórico dos crimes analisados pelo Tribunal Penal Internacional, para que fique claro que, até aqui, são demandas diferentes das dos casos atribuídos a Jair Bolsonaro.

“O Tribunal Penal Internacional foi criado formalmente pelo Estatuto de Roma em 1998, tratado que estabeleceu uma jurisdição criminal para processar indivíduos por crimes de guerra, crimes contra a humanidade, crimes de genocídio e crimes de agressão que só se estabeleceu em 2002, quando alcançou o número de ratificações necessárias para ser criado. Existiram poucas cortes internacionais para julgamento de crimes praticados por pessoas na história das relações internacionais. As primeiras foram os Tribunais de Nuremberg e de Tóquio para julgamento de comandantes dos países do eixo pelos crimes praticados durante a 2ª Guerra Mundial. Já no final do século XX, o Conselho de Segurança estabeleceu dois Tribunais ad hoc para julgamento de crimes ocorridos em Ruanda e na ex-Iugoslávia. O principal problema desses tribunais temporais foi o estabelecimento de uma jurisdição para alcançar crimes já ocorridos, com base em princípios humanitários adotados internacionalmente. Outra não foi a razão para o estabelecimento de um tribunal com jurisdição permanente, garantindo assim a preservação do princípio da anterioridade da lei penal e dos ritos necessários para a garantia da legítima defesa e do contraditório. Há que se compreender, no entanto, que o tribunal só poderá alcançar indivíduos se cumprir três requisitos objetivos. O primeiro é denominado de princípio da complementaridade, que exige que o próprio Estado promova a responsabilização criminal daqueles que cometam os crimes previstos no Estatuto de Roma. Dito de outra forma, o Tribunal é complementar às jurisdições criminais nacionais e só atua em casos de omissão ou falha da justiça, quando não ocorre iniciativa de julgamento desses crimes pelo próprio país onde ocorreram. O segundo é a necessidade de ratificação do Tratado de Constituição do Tribunal. O Brasil ratificou o tratado em 2002. Desde então, os indivíduos brasileiros que cometerem os crimes indicados no Estatuto poderão estar sujeitos ao Tribunal. O terceiro é que os crimes tenham sido cometidos depois da criação do Tribunal em 2002, para assegurar a irretroatividade da lei penal. Observado o histórico dos tribunais já existentes, as condenações decorreram de um contexto de guerra. Ruanda e ex-Iugoslávia passaram por conflitos armados de larga proporções com consequências humanitárias de extrema gravidade, cujos comandantes poderiam ficar impunes, não houvesse a jurisdição internacional. Os crimes julgados até agora no Tribunal Penal Internacional possuem a mesma contextualização. Por essa razão, é comum que se considere que a atuação do Tribunal se justifique em crimes cometidos em conflitos armados de ampla proporção. Devemos considerar, no entanto, que é absolutamente comum no direito a alteração da jurisprudência, em decorrência da mudança das próprias relações sociais. No direito internacional não é diferente. O Tribunal Penal Internacional tem sido provocado a se manifestar sobre situações distintas de um contexto típico de guerra, como foram as denúncias levadas por várias organizações contra Jair Bolsonaro. Sob o governo de Bolsonaro, tivemos duas catástrofes humanitárias de gigantescas proporções, embora em um contexto de suposta normalidade democrática. A perseguição aos indígenas não é apenas retórica discursiva do mandatário. As denúncias promovidas pelo Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos e pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) demonstram cabalmente que há um propósito de destruição da cultura indígena e de extermínio desses povos por doenças ou por homicídio, em atos de ação ou omissão coordenados pelo governo federal com grupos poderosos do agronegócio. Os crimes de genocídio e contra a humanidade são facilmente tipificados nesses casos. Da mesma forma, a pandemia ceifou milhares de vidas de brasileiros. A Associação Brasileira de Juristas pela Democracia - ABJD, o Partido Democrático Trabalhista - PDT e até mesmo o Movimento Brasil Livre – MBL, ex-aliado de Jair Bolsonaro, fizeram denúncias ao Tribunal pelas ações e omissões de Jair Bolsonaro durante a pandemia. A própria Comissão Parlamentar de Inquérito enviou o relatório final para a Corte. Nesse caso, a Corte rejeitou as denúncias sobre Covid por considerar que estão fora da jurisdição do Tribunal”, esclareceu de forma minuciosa a jurista.

Gisele mostrou também como funciona o trâmite do Tribunal Penal Internacional, que não é nada simples. Se um dia Jair Bolsonaro vier efetivamente a responder e ser condenado por seus crimes que fizeram vítimas em massa no Brasil, isso precisará percorrer um longo itinerário.

“Os procedimentos não são simples e são morosos no Tribunal Penal Internacional. As denúncias podem ser encaminhadas por qualquer Estado, pessoas ou grupos para o Escritório da Procuradoria do Tribunal. Atualmente, segundo dados oficiais, são mais de 12 mil denúncias recebidas. O recebimento não significa a necessária tramitação do caso, pois só se passará a fase de investigação se houver, de fato, base razoável de acordo com os critérios do Estatuto de Roma. As denúncias sobre os crimes contra a população indígena e a destruição ambiental poderão ter algum sucesso. Entidades europeias têm pressionado a Procuradoria para iniciar uma investigação, diante de várias denúncias já recebidas. Em março deste ano, enviaram uma petição ao Procurador Geral do TPI com mais de um milhão de assinaturas apoiando a companha “Planeta versus Bolsonaro”, em que destacam como a destruição da Amazônia afeta os povos indígenas e coloca em risco a saúde do planeta. A pressão vem em momento certo, já que a própria denúncia indica que um segundo mandato de Bolsonaro teria consequências devastadoras para a humanidade. Espera-se que em breve a Procuradoria se manifeste pela abertura do caso, já que formalmente informou estar realizando investigações preliminares sobre o tema. De qualquer forma, caso a denúncia seja encaminhada irá para uma Câmara de Pré-Julgamento do Tribunal, em que os juízes decidem se há provas suficientes para enviar o caso para a Câmara de Julgamento. O Procurador pode pedir a prisão ou o comparecimento voluntário do denunciado ao Tribunal, que terá todas as prerrogativas da defesa, em todas as fases do julgamento. A mera aceitação da denúncia pela Procuradoria já sinalizaria uma possível mudança de interpretação do alcance do Tribunal, mas não é possível prever se haverá sucesso em todas as etapas exigidas. O caminho é longo, estamos apenas no início da jornada, mas já podemos concluir que as pressões sofridas pela Procuradoria poderão, de fato, promover uma mudança no alcance jurisdicional no Tribunal, sem que se viole o Estatuto. Se houver algum julgamento de Bolsonaro será num futuro não tão próximo, mas os tempos da história não são sempre coincidentes com nossos anseios por justiça”, disse Gisele.

Questionada sobre casos como o do ditador chileno Augusto Pinochet, que foi detido em Londres nos anos 90 após uma ordem de prisão ser expedida na Justiça da Espanha pelo juiz Baltasar Garzón, que o acusava de abuso contra os Direitos Humanos, ou ainda dos genocidas e ditadores argentinos Jorge Rafael Videla e Emilio Eduardo Massera, processados em cortes da França, Itália e Espanha, a professora da UFRJ opina que esta não é uma possibilidade que deve ser desconsiderada no caso de Bolsonaro.

“A jurisdição universal é um tema que se originou justamente a partir da prisão de Augusto Pinochet. Corresponde uma responsabilidade compartida internacionalmente pela própria evolução dos tratados internacionais de direitos humanos e de outros que tipificam crimes internacionais, a exemplo dos crimes de tortura, crimes de genocídio e crimes contra a humanidade. Foi um caso paradigmático que permitiu atribuir justiça aos crimes praticados por Pinochet. Um marco de que os crimes contra a humanidade não aceitam regras de imunidade. A partir de então se promoveu a concepção de uma justiça transnacional que se traduz na possibilidade de um juiz investigar e processar crimes cometidos no estrangeiro, contra estrangeiros, praticados também por estrangeiros sem que exista relação direta entre o delito e o país do Tribunal. A Espanha avançou muito nesse tema, com a atuação memorável de Baltasar Garzón, um dos maiores defensores da jurisdição universal, mas sofreu alguns reveses com a reforma judicial em 2014. Inspirados na Espanha, Itália e França processaram Jorge Rafael Videla e Emilio Eduardo Massera pelos crimes cometidos no marco da Operação Condor, que posteriormente foram condenados e sentenciados pela anulação da anistia na própria justiça da Argentina. Portanto, penso que as hipóteses estão construídas e são factíveis. As responsabilidades criminais, civis e as devidas indenizações deverão ser levadas a cabo, seja na justiça nacional ou na internacional. Será apenas uma questão do tempo histórico”, considerou.

Quando perguntada se pessoalmente crê numa condenação de Jair Bolsonaro no exterior, a especialista em Direito Internacional não se esquiva, mostra-se realista, mas não descarta a possibilidade de que o futuro do radical extremista pode ser de um acerto de contas com a Justiça.

“Bolsonaro está, ao que tudo indica, deixando o poder em dezembro de 2022. Sua saída irá alterar as relações de força no Ministério Público Federal, nos órgãos de investigação criminal e no Poder Judiciário. Há um grande indicativo de que será processado e condenado pelos crimes que cometeu na justiça brasileira. Milhares de vidas foram perdidas, os indígenas correm o risco de desaparecer. Ao sair do governo, muitas informações ocultadas serão reveladas. Ao mesmo tempo, não se pode ignorar que o bolsonarismo é um fenômeno que custará a desaparecer do Brasil. Isso afeta o sistema de justiça como um todo. Há delegados, juízes e promotores muito alinhados com sua ideologia. O bolsonarismo foi resultado também da inexistência de uma justiça de transição no Brasil que, a exemplo da Argentina, condenou os militares pelos crimes praticados na Ditadura. O STF perdeu a oportunidade histórica de revogar a Lei da Anistia e os militares passaram a ocupar, novamente, o centro político do poder. Há possibilidades, portanto, de que novamente não tenhamos responsabilização criminal no Brasil, a exemplo do que ocorreu na ditadura. As possibilidades de uma responsabilização criminal no TPI já estão encaminhadas e poderão ser reforçadas, a qualquer momento, no futuro. Da mesma forma, não se deve descartar a ideia-força da jurisdição universal junto a países com tradição no tema, sempre que a justiça nacional sinalize que não irá superar seu passado conservador ao deixá-lo impune. A resistência será permanente e dependerá das estratégias do campo progressista para que se estabelece uma verdadeira justiça de transição, tanto para os crimes da ditadura, quando para os de Jair Bolsonaro”, concluiu Gisela.

Já o professor Raphael Carvalho de Vasconcelos, titular da cadeira de Direito Internacional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), que também é advogado e consultor, fala sempre em “hipótese remota”, mas salienta que a possibilidade existe quando o assunto é colocar Jair Bolsonaro no banco dos réus do Tribunal Penal Internacional ou em cortes do exterior.

“A hipótese é remota, mas existe. No que se refere à pandemia, por mais que profissionais consagrados do direito apontem materialidade possível de ser reconduzida ao Tratado de Roma, me parece pouco provável que algum procedimento com esse objeto prospere no TPI. Já no contexto das questões indígenas e da condução de políticas de proteção de povos originários as possibilidades são maiores, mas ainda assim existem aspectos difíceis de serem superados para uma responsabilização pessoal. O TPI tem sido utilizado mais como um elemento argumentativo da retórica política do que como um caminho jurídico plausível para a responsabilização do presidente. Qualquer conclusão diferente me parece superficial e um pouco irresponsável”, ponderou Vasconcelos.

No caso da pandemia, para o jurista, a acusação abriria precedentes e, como tudo é política, isso poderia atravancar qualquer possibilidade de responsabilizá-lo em Haia. No caso dos povos originários, ele entende que isso seria possível, ainda que remotamente, se líderes internacionais quisessem usar Bolsonaro como um caso que servia de exemplo a outras lideranças com viés devastador.

“Seria necessário um consenso político internacional mais amplo para a responsabilização pessoal do presidente no TPI. Quanto à pandemia, isso poderia gerar um precedente para enquadramento de outros líderes e o tribunal enfrentaria uma resistência política muito grande. Na questão indígena, pode ser que o mundo queira dar uma lição, mas também aqui o tribunal precisaria ter um respaldo político muito forte. Vejo chances remotas”, disse, cético.

Casos como o de Pinochet, Videla e Massera, para o professor da Uerj, até podem se repetir. Seria difícil prever, segundo ele, mas é algo que no futuro não seria impossível.

“Hipoteticamente, tudo é possível no direito. Quando Pinochet saiu do poder, seria impensável sua detenção por outra competência jurisdicional. Mas aconteceu. Acredito ser improvável no curto prazo e imprevisível no longo prazo”, opinou.

Leia aqui a 1ª parte da Série "O Futuro de Bolsonaro"