SEGURANÇA PÚBLICA

VÍDEO: Vice de Nunes já defendeu abordagens policiais mais violentas na periferia

O coronel Ricardo Mello Araújo deu a famosa declaração em 2017 quando ainda era comandante da Rota; Entenda por que PM age de maneira diferente a depender do lugar

Ricardo Mello Araújo em 2017.Créditos: Reprodução
Escrito en POLÍTICA el

Ricardo Mello Araújo (PL) acaba de ser anunciado nesta sexta-feira (21) pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) como o candidato à vice da chapa de Ricardo Nunes (MDB), que concorre à reeleição para a Prefeitura de São Paulo. Coronel aposentado da Polícia Militar paulista e ex-comandante das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (a Rota, que agora tem diversos ex-oficiais lotados na Secretaria de Segurança Pública de São Paulo), Mello também é apadrinhado do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

Nome forte do campo bolsonarista, recebeu a anuência de 12 partidos que integram a base de apoio da pré-candidatura de Nunes. E todo esse apoio se deve sobretudo ao ex-presidente que o indicou e pressionou pela sua entrada na chapa. Mello tem um histórico de defesa de pautas e pontos de vista identificados com a extrema direita, especialmente no que se refere à atuação das polícias.

Em 2017, logo que assumiu como comandante da Rota, deu uma famosa entrevista ao Uol em que defendeu e justificou a diferença nas abordagens policiais realizadas nas periferias e em bairros nobres. À época, usou como exemplo a região dos Jardins, no centro expandido de São Paulo, famosa por abrigar a elite econômica paulistana.

“A gente pega um policial que trabalha numa área de periferia e um que trabalha nos Jardins. Já muda. Nos Jardins, a forma como ele vai lidar com a comunidade ou com as pessoas que transitam por lá é totalmente diferente do policial que trabalha na periferia. Se ele for abordar uma pessoa da mesma forma que abordaria aqui nos Jardins, ele vai ter dificuldades. Não vai ser respeitado. Da mesma forma, se eu coloco um da periferia para lidar, falar com a mesma linguagem aqui nos Jardins, ele pode estar sendo grosseiro com a pessoa dos Jardins ali, que está andando”, declarou Mello.

À Folha, aliados de Nunes questionam o apoio oficial dado ao ex-PM e temem que sua figura faça com que a população associe, erroneamente, a pauta da segurança pública com a Prefeitura, ao invés do Governo do Estado, que é o verdadeiro responsável pela área. Nesse contexto, o Datafolha indicou que 23% dos paulistanos consideram a insegurança como o pior problema da cidade. Há ainda a preocupação com a própria segurança da campanha, dado o histórico do vice, em determinadas localidades das periferias.

Mello ainda pode colar definitivamente a campanha de Nunes a Bolsonaro, o que pode ocasionar a perda de votos já que o ex-presidente é avaliado como o pior cabo eleitoral na capital paulista. As campanhas de Tabata Amaral (PSB) e Guilherme Boulos (Psol) devem explorar a imagem do vice para enfraquecer o prefeito.

Do lado de Nunes, a ideia é usar a gestão de Mello à frente da Ceagesp durante o governo Bolsonaro. Ele teria sido o responsável por "combater a corrupção" e “colocar ordem na casa”. Mas também é acusado de promover a militarização do local de trabalho e cometer abusos de autoridade.

Por que as abordagens são violentas nas periferias

Quando os militares dão o golpe em 1964 implementam um regime de governo que tinha como fundamento a chamada doutrina da guerra revolucionária. Trata-se de uma ideologia militar criada pelos franceses para combater movimentos insurgentes na Argélia.

A população argelina estava se revoltando contra a opressão colonial e os franceses começam a criar um sistema de gestão e um regime político para coibir focos de independência. Na ponta dessa doutrina está o entendimento de que o inimigo não usa mais um uniforme. Pelo contrário, estaria incorporado à população que se pretende governar.

A explicação foi feita pelo antropólogo Orlando Calheiros à Fórum na ocasião dos 60 anos do golpe militar e buscava fazer um resgate histórico da raiz da nossa política de segurança pública, que hoje é um verdadeiro caos.

“Um dos métodos usados por essa doutrina é o do medo. Você cria um aparato de terror que vai operar produzindo medo para impedir que as pessoas entrem nesses processos revolucionários, porque ‘se eu virar revolucionário eu vou morrer’. E como que se constrói esse medo? Com as ações de busca e destruição, um termo muito usado pelos EUA no Vietnã. Tem até uma música do Metallica que fala sobre isso, a Seek and Destroy. É basicamente ir para um lugar e matar todo mundo. Outro tipo de ação prevista por essa doutrina era o uso ostensivo e extensivo da tortura. A tortura tem uma finalidade de extração de informações, mas também tinha uma ideia de produzir medo, porque ninguém quer ser torturado. E as torturas vão se tornando cada vez mais elaboradas”, explica Calheiros.

O antropólogo ainda aponta que à época toda a indústria militar se adaptou à nova doutrina. Entre outros, começaram a surgir os chamados “helicópteros Apache”, desenhados para rápidas incursões no novo tipo de território inimigo.

“Essa doutrina chega no Brasil pela Escola das Américas, onde ocorre a formação de boa parte dos torturadores e dos generais do regime. O problema do nosso aparato de segurança vem daí. E aqui eu não estou falando só da PM, mas também da Polícia Civil e da Federal. Esse aparato não é feito, por exemplo, para coibir crimes. Ele não é feito para coibir o tráfico internacional de drogas. Ele é feito para produzir todo um sistema de medo na ponta. A Polícia Militar não existe num vácuo. O desenho da Polícia Civil, o desenho da Polícia Federal, o desenho da PM e de todos os setores de inteligência remete a essa ideia de que você está lutando contra um inimigo que se camufla e se mistura com a população”, acrescenta.

Veio a redemocratização, a Constituição de 1988 e as estruturas policiais herdadas do regime militar se mantiveram intactas. Agora, sem o inimigo oriundo dos partidos políticos clandestinos – em democracia todos seriam legalizados – a figura do “inimigo interno” ficaria completamente vinculada às camadas mais pobres da sociedade. A chamada “Guerra às Drogas”, impulsionada pelos EUA, viria a reboque deste modelo.

Dias antes de gravar a entrevista com Calheiros, Ana Paula Oliveira - a mãe do Jonathan Oliveira e fundadora do Mães de Manguinhos, um coletivo de mães que tiveram seus filhos torturados e executados pela Polícia do Rio – viu sair a sentença que isenta o soldado da PM que efetuou sete tiros de fuzil contra o seu filho, pelas costas. A Justiça do Rio de Janeiro considerou que ele praticou homicídio culposo, sem a intenção de matar. Dias mais tarde, os PMs que atiraram e arrastaram Cláudia Silva Ferreira pelas ruas do Rio também foram inocentados.

“Esse tipo de corporativismo, que isenta o militar de suas ações, é o que faz com que a gente viva numa sociedade que discute abertamente a possibilidade do massacre e da barbárie. Mas não é apenas discussão, há também pessoas que se elegem promovendo essa barbárie, e pautando, entre outros, a criação do excludente de ilicitude para os policiais que matarem pessoas. Esse tipo de corporativismo só é possível porque tem gente relativizando ou querendo apagar a história de violações referidas aos militares”, lembra Orlando.

Recentemente, a popularidade do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), aumentou na Baixada Santista após quase uma centena de mortos nas operações Escudo e Verão, entre 2023 e 2024. Fora do Brasil, vemos um cenário semelhante no Equador, onde após dois meses de “conflito armado interno”, 12 mil prisões e algumas execuções extrajudiciais, a popularidade do presidente Daniel Noboa também subiu. Em ambos os casos, os políticos chegaram perto dos 80% de aprovação.

“O desenho da segurança pública no Brasil foi feito pelos militares em 1964. É fundamental que se fale sobre a ditadura militar para que se entenda que esse modelo de segurança pública que a gente vive. Além de todo o processo de extermínio e de execução, nos deu o PCC, nos deu o Comando Vermelho, nos deu todas essas facções, porque tudo isso está umbilicalmente ligado. Esse processo começa nos militares, é desenhado por eles e isso não é um acidente. O que vemos hoje, as mortes na Bahia, em São Paulo e no Rio de Janeiro, nada disso é um acidente. Na verdade, isso é a máquina que os militares desenharam funcionando perfeitamente. Não podemos tratar como casos isolados. A gente vive num país que chacina policial é show biz eleitoral. Porque isso dá para a população uma impressão de que algo está sendo feito” concluiu.