SOBERANIA CULTURAL

“Ato pelo VOD”: audiovisual convoca mobilização em defesa da regulação do streaming

Setor se une para pressionar o Congresso a resistir ao lobby das grandes plataformas estrangeiras e aprovar uma regulação que garanta investimento local, geração de empregos e fortalecimento da cultura brasileira

Créditos: Canva
Escrito en POLÍTICA el

Nesta segunda-feira, 3 de novembro, profissionais do cinema, da TV e do audiovisual brasileiro realizam o "Ato pelo VOD", uma mobilização nacional contra o que classificam como o “pior projeto de todos os tempos” para a regulação do streaming em discussão no Congresso Nacional.

Confira aqui a postagem oficial.

Os organizadores afirmam que o texto atual atende ao lobby das grandes plataformas estrangeiras e ameaça o futuro do setor independente no país. O objetivo do ato é pressionar parlamentares a defender uma regulação que garanta investimento local, geração de emprego e soberania cultural.

Setor sob ataque

O Manifesto pela Soberania do Audiovisual e Cinema Brasileiro: A Urgência da Regulamentação do VoD, assinado por PH Souza, presidente da Associação Brasileira de Cineastas (Abraci) e fundador da Cafeína Produções, faz um alerta contundente: o setor audiovisual brasileiro vive um momento crítico e exige ação imediata.

“Apesar do prestígio internacional conquistado com prêmios em Cannes, Berlim e no Oscar, o mercado interno enfrenta uma crise estrutural agravada pela falta de regulação do streaming”, destaca o documento.

Segundo o manifesto, há 13 anos as plataformas estrangeiras operam no Brasil — o segundo maior mercado de streaming do mundo — sem qualquer contrapartida para o desenvolvimento local, o que coloca em risco salas de cinema, produtoras e milhares de empregos.

O texto lembra que o audiovisual movimenta cerca de R$ 27 bilhões por ano e gera mais de 300 mil postos de trabalho diretos, representando 0,5% do PIB nacional. Por isso, defende que o Congresso aprove com urgência um marco regulatório que obrigue as plataformas a recolher a Condecine-VoD e investir em produções brasileiras, seguindo o exemplo de países como França e Coreia do Sul.

“Sem essa regulação, o lucro obtido no Brasil continuará financiando produções estrangeiras, enquanto a indústria criativa nacional perde força, recursos e soberania cultural”, conclui o texto.

Mercado brasileiro

O Brasil está entre os maiores consumidores de streaming do mundo — e, por isso, cresce a pressão para que as plataformas que lucram com audiência, produções e talentos nacionais também contribuam para o fortalecimento da indústria criativa brasileira.

De acordo com levantamento da Ancine, o faturamento anual das plataformas no país é estimado em R$ 69,7 bilhões. Com base nesse valor, a agência calculou o potencial de arrecadação da Condecine-Streaming, novo tributo voltado ao desenvolvimento do setor audiovisual.

Se aplicada uma alíquota de 3%, a arrecadação poderia chegar a R$ 2,28 bilhões por ano. Com 6%, o montante subiria para R$ 4,57 bilhões, e, com 12%, ultrapassaria R$ 9,1 bilhões.

A título de comparação, a Condecine tradicional arrecadou R$ 1,2 bilhão em 2024 — valor muito inferior ao potencial projetado para o novo modelo. Esses números ilustram o peso econômico do streaming e reforçam o argumento de que as plataformas estrangeiras devem participar de forma mais justa no financiamento da produção audiovisual nacional.

Posicionamento do Ministério da Cultura

O Ministério da Cultura (MinC) divulgou duas notas oficiais nesta semana sobre o Projeto de Lei 8.889/2017, que regulamenta os serviços de streaming no Brasil.

No primeiro comunicado, de 27 de outubro, a pasta reconheceu o esforço do relator, deputado Dr. Luizinho (PP-RJ), mas considerou que o texto “ainda apresenta necessidades de melhorias técnicas e mudanças de modelagem” antes de seguir para votação.

O ministério destacou pontos de atenção como a cota de tela para conteúdo brasileiro, o uso dos recursos da Condecine e o percentual de reinvestimento em produções independentes nacionais. Segundo o MinC, a Ancine está realizando uma análise técnica detalhada do documento, que subsidiará o posicionamento final do governo.

Quatro dias depois, em 31 de outubro, o tom do Ministério endureceu. Em nova nota, o MinC afirmou que o relatório representa “um retrocesso em relação às diretrizes construídas de forma técnica, participativa e democrática ao longo dos últimos dois anos”.

O texto, segundo o governo, reduz o alcance da política pública de fomento ao audiovisual, enfraquece o papel do Estado na regulação e privilegia a lógica das plataformas globais, desconsiderando pilares essenciais defendidos pelo ministério e pela Ancine.

Entre os principais problemas apontados estão a restrição das cotas e investimentos apenas a serviços sob demanda, a flexibilização excessiva de regras, a fragilização da Condecine — principal instrumento de financiamento do audiovisual — e a redução da responsabilidade das plataformas estrangeiras em relação às empresas nacionais.

Diante dessas falhas, o MinC pediu o adiamento da votação do projeto para permitir um debate mais aprofundado no Congresso.

O Ministério reiterou seu compromisso com a criação de um marco regulatório equilibrado e moderno, que garanta condições justas de competição, fortaleça a produção independente e assegure a diversidade e a soberania cultural brasileira.

Segundo o comunicado, a regulação do streaming deve refletir o interesse público e o papel estratégico do audiovisual como setor econômico, criativo e identitário do país — e não se submeter “à lógica das plataformas globais”.

Entenda o lobby e o novo texto do PL do Streaming

O jornalista Fernando Lauterjung, editor do portal Tela Viva, especializado na cobertura do setor audiovisual e de mídia desde 1997, fez um raio-X das negociações que movimentam o Congresso Nacional. Confira o resumo:

O debate sobre a regulação das plataformas de vídeo sob demanda (VoD) — como Netflix, Prime Video e Globoplay — ganhou novos contornos nesta semana. Um novo substitutivo para o Projeto de Lei 8.889/2017, que define regras para o funcionamento desses serviços no Brasil, foi apresentado pelo deputado Doutor Luizinho (PP-RJ) na quinta-feira (31).

O texto traz mudanças significativas em relação à versão divulgada apenas três dias antes, em 27 de outubro, e revela a disputa intensa entre grandes grupos econômicos, plataformas estrangeiras e produtores independentes.

A nova proposta ajusta dispositivos tributários, redefine cotas de conteúdo nacional e altera conceitos centrais como o de “obra brasileira independente”, pontos que têm provocado reações distintas dentro do setor audiovisual.

O que mudou no texto

Entre as principais alterações estão o recuo na tentativa de modificar a Lei do Serviço de Acesso Condicionado (SeAC) — que regula a TV por assinatura e impede a propriedade cruzada entre operadoras e produtoras de conteúdo — e a concentração da proposta exclusivamente na regulação do streaming.

A ideia de alterar a estrutura do mercado de TV paga foi abandonada, o que atende parcialmente às demandas das grandes operadoras e das plataformas digitais.

O novo texto mantém a criação da Condecine-Streaming, contribuição voltada ao desenvolvimento do cinema e do audiovisual brasileiro, mas ajusta sua implementação às regras constitucionais da “noventena” e da “anterioridade anual”, que determinam o intervalo mínimo entre a publicação e a cobrança de tributos. A alíquota ainda será definida, mas o imposto passa a valer 90 dias após a publicação da lei.

Tributação e distorções no mercado

Um dos pontos mais polêmicos é a tributação dupla para empresas que operam tanto TV por assinatura quanto serviços via internet, como Claro TV+ e Sky+. O texto não isenta essas companhias da nova Condecine, o que, segundo o mercado, cria uma sobreposição de encargos e distorce a concorrência.

Também há críticas à obrigação de que os serviços de TV por streaming carreguem os mesmos canais públicos lineares exigidos na Lei do SeAC — como TV Câmara, TV Senado e TV Justiça —, medida considerada inviável para plataformas que operam de forma digital e sob demanda.

Cotas de conteúdo e proteção ao cinema brasileiro

Em relação ao conteúdo, o substitutivo mantém a cota mínima de 10% de produções brasileiras nos catálogos, sendo metade (5%) destinada a obras independentes. Há um escalonamento de oito anos para o cumprimento integral das cotas, começando com 1,25% no primeiro ano.

A nova versão também endurece o conceito de “conteúdo brasileiro independente”, exigindo autonomia artística e comercial e garantindo que a produtora detenha a maior parte dos direitos patrimoniais da obra — uma vitória para o setor independente e para o Ministério da Cultura.

Sanções mais brandas para as plataformas

O texto reduz as sanções para as plataformas que descumprirem as regras. As multas máximas caíram de R$ 100 milhões para R$ 50 milhões, e foram eliminadas penalidades mais severas, como suspensão temporária ou cancelamento do serviço.

Em substituição, o projeto prevê apenas a publicização da infração após comprovação — uma medida vista como enfraquecimento do poder regulatório do Estado e uma concessão às big techs e grandes grupos de mídia.

Distribuição regional dos recursos da Condecine

Na distribuição dos recursos da Condecine, o relator manteve a reserva de 30% para produtoras do Norte, Nordeste e Centro-Oeste, e ajustou a destinação dos outros 20% para empresas das regiões Sul e Sudeste — com exceção do Rio de Janeiro e de São Paulo, para evitar concentração de verbas nos dois maiores polos de produção do país.

Essa mudança atende a uma antiga demanda de descentralização da produção audiovisual, incentivando novos polos regionais e reduzindo desigualdades históricas no acesso ao financiamento público.

Impacto sobre TV aberta e serviços de catch-up

Outra mudança de impacto atinge os serviços de catch-up — que permitem assistir a programas após a exibição original —, como o Globoplay gratuito. Esses serviços passam a ser incluídos na regulação, diferentemente dos canais por assinatura, que seguem isentos.

Fim das campanhas obrigatórias de saúde pública

Por fim, o relator retirou a exigência de que produções financiadas pela Condecine incluíssem campanhas de saúde pública de até 10 segundos. A justificativa é que a medida fugia ao escopo do projeto, mas críticos afirmam que a mudança elimina uma contrapartida social importante.

O que está em jogo

O novo parecer revela um equilíbrio delicado entre interesses do mercado, demandas do setor independente e pressões das plataformas internacionais. Para o audiovisual brasileiro, o texto representa um avanço na busca por regras claras, mas também um alerta sobre o risco de enfraquecimento das políticas públicas de fomento e regulação, fundamentais para garantir diversidade, emprego e soberania cultural.

Parte dos produtores elogiam novo parecer

Em outra matéria, Lauterjung ouviu representantes de empresas que compõem a maior parte do PIB da produção audiovisual independente e que apoiam o parecer do deputado Doutor Luizinho (PP-RJ) para o PL 8.889/2017, que regula o streaming no Brasil.

Eles afirmam que o texto pode injetar até R$ 2 bilhões por ano no setor e garante o conceito de produção independente, com alíquota de 4% da Condecine, sendo 70% destinados a investimento direto e 30% ao Fundo Setorial do Audiovisual (FSA).

Os defensores do projeto dizem que ele moderniza o modelo de financiamento, traz agilidade na liberação de recursos e corrige distorções históricas, como o antigo desconto da Globo. Também elogiada é a inclusão das Big Techs, como o YouTube, que passariam a contribuir com 2% da receita.

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