“A política do governo Bolsonaro contra a violência é desastrosa”, afirma Pedro Serrano

O jurista comenta, em entrevista exclusiva à Fórum, a política de encarceramento em massa de Moro que, para ele, só faz aumentar a violência e realimentar o crime organizado

O jurista Pedro Serrano (Foto: GGN)
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Em entrevista exclusiva à Fórum, o jurista Pedro Serrano fez previsões sombrias a respeito do pacote de medidas contra o crime do ministro da Justiça Sérgio Moro lançado nesta segunda-feira (5). Ele falou também sobre a ressonância que as medidas têm em alguns estados, sobretudo o Rio de Janeiro, onde o governador recém empossado Wilson Witzel já anunciou, nesta semana, a construção de presídios verticais. Para Serrano, a aposta no encarceramento em massa realimenta o crime organizado, surgido dentro dos presídios e que tem na população carcerária o seu exército. Além disso, o jurista afirma que a medida vai contra a tendência no mundo todo, inclusive nos EUA do presidente ultradireitista Donald Trump. Por lá, tramita no Congresso, com o apoio de Trump, um projeto de lei que reforma sentenças prisionais de forma abrangente, reduzindo condenações e ampliando programas para reduzir a reincidência.? O jurista afirma ainda que nós “não só aprisionamos muito como aprisionamos mal”, pois quem é preso não é o criminoso violento, mas sim o pequeno traficante ou o autor de pequenos delitos que, invariavelmente, é jovem, negro e morador das periferias. “Já fomos duas vezes admoestados pela ONU e pela OEA por causar prisões preventivas e banalizadas como forma de controle social”, recorda o jurista. Nesta conversa, Pedro Serrano retoma o processo de encarceramento em massa desencadeado no Brasil na década de 90, as suas consequências e, agora, a sua retomada com aceleração máxima por Moro, refirmando, de acordo com ele, erros de um passado próximo e os projetando para o futuro. Fórum – Nas últimas décadas demos um grande salto nos índices de violência. Ao mesmo tempo, aumentamos em muito a população carcerária. Onde nós erramos? Pedro Serrano – A questão de segurança pública e do sistema penitenciário brasileiro são dois problemas muito maltratados, tanto pelas lideranças do governo tanto pela oposição. Se você se propuser à tentativa de mitigação do problema, que obviamente é difícil, você tem que buscar as razões reais do problema e procurar abordá-lo de forma minimamente racional, com base nos dados estatísticos da história recente do país. E procurar, através desses dados, procurar entender como é que se dá esse processo no Brasil de aprisionamento e ao mesmo tempo de violência. Pelos dados a gente observa que elas estão relacionadas. Fórum – O que, na sua opinião, desencadeia a violência? Pedro Serrano – O que a gente observa é que o Brasil tem uma característica interessante. Todo o país desigual do mundo é violento. Não há praticamente exceção a essa regra. Ou seja, a desigualdade é efetivamente um fator de produção de violência e criminalidade violenta. Países relativamente iguais, porém, pobres, não têm muita violência. Países iguais e de bom padrão de vida também não têm muita violência. Até os EUA, que é um país rico, ele é o mais violento da OCDE porque é o mais desigual. O Brasil não é exceção a isso. O Brasil é desigual e também teve índices mais elevados de violência. No Brasil eu creio que o problema é mais sentido, porque esses índices variam dentro dos países desiguais. O que nós observamos é que países tão ou mais desiguais que o Brasil, têm índice de violência menor. Isso me leva a crer que no Brasil, além do problema da desigualdade, há uma política pública que estimula, através do encarceramento em massa, o aumento progressivo da violência. Fórum – O que você afirma então é que o encarceramento em massa, além de não resolver o problema, o amplifica? Pedro Serrano – O mecanismo é relativamente simples. Desde a década de 90, há um acentuado aumento do encarceramento, especialmente das populações negras e pobres das periferias. Veja que é datado isso, vem da década de 90. Não é algo de cem anos. Sempre houve população jovem e negra das periferias aprisionada. O Direito Penal sempre foi forma de controle social. Mas nunca dessa forma tão intensificada quanto a partir da década de 90.  Nós mais que quadriplicamos esse número em algumas décadas. Nós duplicamos esse número nos últimos anos. Hoje nós somos o terceiro maior país que aprisiona no mundo, segundo dados do Infopen, e somos o único dentro dos grandes aprisionadores que cresce a cerca de 7% ao ano o número de presos. Os EUA combatem o encarceramento, procura diminuir o número de aprisionados e já conseguiu estacionar. A China e a Rússia também não. Só o Brasil permanece crescendo. Fórum – Mas afinal, quem é que está lotando os presídios brasileiros? Pedro Serrano – O pior é que nós, não só aprisionamos muito como aprisionamos mal. No estado de São Paulo, cerca de 90% dos inquéritos que trata de homicídio não tem solução, você não encontra o autor. Quem vai pra cadeia não é o autor do crime violento. O crime violento é só usado como mecanismo de mídia, que estimula o aprisionamento em massa, mas quem é preso não é o criminoso violento. Não é o autor do assassinato que nós vemos nos jornais. Quem vai preso são os pequenos traficantes, pequenos furtadores, autores de pequenos roubos, que são quase 90% da nossa população carcerária. Destes, 42% não está presa por uma decisão definitiva, está presa por uma decisão cautelar, provisória, preventiva. A gente já foi duas vezes admoestado pela ONU e pela OEA por estar causando prisão preventiva, cautelar, banalizadas, como forma de controle social, o que é um absurdo, pois se aprisionam pessoas sem direito de defesa. Fórum – E o governo pretende prender ainda mais gente. Pedro Serrano – Nós encarceramos muito e encarceramos mal e o projeto do governo não resolve nada disso, nem sequer passa perto do problema, só aumenta. E esse aumento do encarceramento é que alimenta o crime organizado, que surgiu no Brasil por conta do aumento do consumo de cocaína na década de 80. Foi a partir dali que o Brasil se transformou no maior distribuidor da droga no mundo, ao lado do México. Por estar no caminho da droga, o Brasil desenvolve um grande mercado interno, ou seja, o segundo país do mundo em termos de mercado interno de consumo de cocaína, embora a imensa maioria desse mercado esteja na Europa e EUA, mas como ele é caminho da droga, ele obteve esse ônus. Os traficantes que nós vemos nos jornais, que são os mais famosos, participam desse mercado interno. Fórum – Mas não é através deles que as drogas entram no país Pedro Serrano – Pois é. O mercado da distribuição global é feito por traficantes que não aparecem no jornal, de classe média alta, ricos que moram em Miami. Ou seja, nós temos dois grandes mercados de drogas no Brasil, um interno e outro de distribuição mundial. O único traficante desses conhecidos que circulou nos dois mundos foi o Fernandinho Beira-Mar. Fora desta exceção, todos os outros são aqueles de origem pobre, que operam o mercado interno. Os traficantes de classe média alta e baixa, que operam com a distribuição pra Europa e EUA, esses não são conhecidos. Fórum – E onde foi que falhamos na política de guerra às drogas? Pedro Serrano – Nós implementamos a política contra as drogas determinada pelos EUA, que é a de guerra. Só que não somos um país com riqueza suficiente para desenvolver essa política de guerra às drogas. Então o que acontece? Nós acabamos implementando uma política de encarceramento em massa, que prende o pequeno traficante, que é a política que a gente tem hoje, e isso vai alimentar a formação do crime organizado, porque o crime organizado não surge na sociedade, mas sim dentro da cadeia. Ele historicamente surgiu no Brasil como uma forma de defesa dos presos por conta da péssima condição de aprisionamento. Ele floresce aí, na condição sub-humana que a gente trata o preso. E ele passa a ser alimentado por esse aprisionamento em massa. O jovem entra preso por um crime de baixa ofensividade social, preso normalmente por uma medida cautelar sem ter tido direito de se defender, e pra poder manter a sua integridade física e a sua vida dentro da cadeia, - você tem vários documentários e vários trabalhos de pesquisa nas universidades demonstrando isso – ele é obrigado a se afiliar a uma das organizações criminosas que manda no presídio. Ou seja, ele entra um criminoso de baixa potencialidade ofensiva e sai um homicida, um soldado do crime organizado. Eu usei expressão num artigo da Carta Capital falando que o aprisionamento em massa fornece esse mal, fornece exércitos pro crime organizado. O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF) usou a mesma expressão quando estava votando a questão do decreto de indulto do Temer. Ele disse que esse encarceramento em massa irracional – e olha que ele é um homem conservador – fornece exércitos de mão de obra pro crime organizado. Nem o governo e nem oposição até agora tocaram nesses problemas. Nenhum deles desenvolveu uma política que vise ver essa questão nas razões dela, de forma racional. Fórum – E como, na sua opinião, se pode tratar esse problema? Pedro Serrano – Resolver essas questões, falando claramente, implica em medidas impopulares. A primeira delas é o desencarceramento do criminoso de baixa potencialidade ofensiva. Em especial, aquele que está preso em ordem cautelar, sem ter tido o direito de se defender. E essa medida desagrada a população no circuito afetivo que foi criado na sociedade que acha que matando e aprisionando você vai resolver o problema da segurança. Os dados são objetivos. Nós saímos de um país que tinha um número de homicídios considerados dentro da média mundial relativamente equilibrado, no fim da década de 80, para hoje sermos o país com o maior número absoluto de homicídios do mundo e a polícia que mais mata e morre no mundo. Nós matamos quase 70 mil pessoas por ano. Isso significa dizer que nós estamos matando mais por ano do que a guerra do Vietnã em todo o seu percurso, do que o conflito árabe/israelense matou desde 1958. É um genocídio da população. A maior parte jovem e negra. É interessante que o mesmo perfil da população morta é o da população aprisionada. Talvez por isso não tenha tanto esforço do Estado em apurar crimes violentos. Porque a vítima maior do crime violento é a pobreza. Fórum – Nas últimas décadas tivemos governos de esquerda e a situação não mudou Pedro Serrano – Há a incompreensão do outro lado, da esquerda, de entender que lutar contra a pobreza também é lutar contra o crime organizado e lutar contra essa violência. Nós teríamos que ter medidas de curto, médio e longo prazo pra tentar mitigar esse problema e tentar reverter, pelo menos, essa política pública enquanto a desigualdade não recuar. O que significaria, não uma solução do problema, nem de longe, mas uma mitigação dele. Para isso nós teríamos que ter, sim, repressão ao crime, mas concentrada nos crimes violentos e no crime organizado. E pra isso é preciso reduzir o código penal e não fazer o que o governo tá fazendo e ampliando o código penal. E pra isso ele não pode ficar disperso querendo prender todo mundo por tudo. O sujeito dirige embriagado, não machucou ninguém, vai pra cadeia. Ou seja, tudo quanto e crime a solução é cadeia e aprisionamento. O usuário de drogas é classificado pelo delegado como tráfico porque não há um critério claro na lei e o cara acaba preso, ou seja, há uma dispersão do aparelho de repressão estatal em torno de crimes que a sociedade não tem como prioridade punir. A prioridade deve ser os crimes que ameaçam a integridade física e a vida e não os crimes patrimoniais, que têm um caráter secundário, que devem ser punidos de outra forma. Para se ter uma ideia, uma tornozeleira, que aprisiona o sujeito em casa, custa menos de 10% do valor de uma pessoa aprisionada. A cadeia é mal usada e é muito cara. Cada preso custa cerca de R$ 4 mil por mês pro Estado. Uma tornozeleira custa R$ 300 por mês. E o preso, se tem condição financeira, pode ele mesmo pagar. Fórum – Mas o Bolsonaro foi eleito para fazer exatamente o contrário Pedro Serrano – Nós precisamos ter uma política que, num primeiro momento, combata o crime de forma concentrada, e isso implica em ter que adotar medidas legislativas contrárias as que o governo tá assumindo. Tem que reduzir o número de crimes, concentrar a repressão estatal nos crimes violentos e o combate ao crime organizado ser federalizado, com a formação de uma força especial pra isso, pra que não tenha os limites das barreiras estaduais. Nós precisávamos adotar esse modelo que implicaria uma medida impopular que é reduzir o aprisionamento dos crimes de baixa ofensividade. Fórum – O governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel anunciou que, pra atender a demanda que o pacote do Moro irá gerar, pretende construir presídios verticais. Pedro Serrano – Essa medida do Witzel no Rio de Janeiro acompanha as medidas do Governo Federal pra ir nesse caminho irracional que só vai aumentar o aprisionamento, alimentar mais o crime organizado dos seus exércitos e aumentar a violência. Isso vai ser fatal. Nós vamos acompanhar os índices e daqui a um tempo nós vamos ver que não resolveu o problema da violência, não vai resolver e só vai aumentar, porque é um ciclo negativo isso. Você aumenta o número de aprisionados por crimes de baixa ofensividade, eles saem soldados do crime organizado. Vão cometer crimes violentos, porque eles não têm outra solução. Ele tem que se afiliar a uma organização criminosa. Esse presídio do Rio imediatamente criado e ocupado já vai ser comandado pelas organizações criminosas. O Estado comanda a cadeia até o corredor geral. Os pátios, corredores internos e dentro das celas, quem comanda é o crime organizado. Não é o Estado. Essa é a realidade de qualquer presídio grande no Brasil. Não há presídio grande no Brasil em que a área interna dele, onde habitam os criminosos, seja controlado pelo Estado. O Estado não controla. Isso tudo por esse processo histórico. Essa medida do governo do Rio de Janeiro só vai ter mais custo pro Estado, um custo que só vai alimentar o crime organizado. O Estado gasta pra formar os exércitos em favor do crime organizado que depois ele tem que combater nas ruas e expor seus policiais à violência e à morte. É treinar a polícia pra um estado de guerra que não tem solução. É enxugar gelo e vai ser sempre. O Rio de Janeiro, dando aparência que está querendo diminuir a violência e dar mais segurança, vai só trazer mais desordem, mais insegurança e mais violência pra sociedade, acompanhando a política do Governo Federal atual que é desastrosa. Nós vamos ver os índices daqui a um tempo.