Bernardo Cotrim: Algumas impressões sobre o 1° turno e considerações sobre a disputa do 2° turno

Haddad não pode transformar-se em uma tábua de salvação para o sistema político rejeitado pelo povo, e sim a sua refundação democrática e cidadã, baseada na retomada da esperança e das oportunidades para o país

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[caption id="attachment_142018" align="alignnone" width="770"] Foto: Ricardo Stuckert[/caption] Por Bernardo Cotrim* 1- A guinada golpista no discurso do PSDB após a derrota de Aécio em 2014 - com o não reconhecimento do resultado das urnas, a aliança com Eduardo Cunha, combinadas com a perseguição judicial e midiática ao governo e ao PT - criou as condições favoráveis para o tsunami fascista destas eleições. A radicalização da direita tradicional no impeachment de Dilma, dividindo palanque com defensores da ditadura militar e com expressões violentas da direita, extinguiu fronteiras entre a democracia e a barbárie. Simultaneamente, a Lava Jato e seus apoiadores semearam, ancorados em farta exposição e apoio midiáticos, a criminalização da política - num primeiro momento, do governo, do PT e da esquerda, mas alcançando lideranças tradicionais do PMDB, DEM, PP e PSDB na etapa posterior - e Bolsonaro soube canalizar esta revolta antissistêmica: contra o sistema político corrompido, o outsider corajoso e justiceiro, disposto a limpar tudo, doa a quem doer. 2- Esta avalanche, alavancada por uma engrenagem impressionante de informação e contrainformação, capaz de disseminar boatos em segundos, obteve uma vitória política impressionante: de partido nanico, o PSL tornou-se a segunda maior bancada da Câmara, com 52 deputados. Policiais, militares, blogueiras, parentes do candidato presidencial, artistas decadentes e outras personas fazem parte da nova maioria da direita: coube de tudo neste imenso balaio de gatos, menos “políticos tradicionais”. Até apoiadores de primeira hora de Bolsonaro, como o senador Magno Malta, foram varridos pela onda antissistêmica, que desidratou especialmente os partidos que até então dirigiam o campo neoliberal. Neste quadro, a derrota do PSDB é, até agora, o dado mais expressivo do processo eleitoral, mas saltam aos olhos, além dos casos citados, as derrotas de Eunício Oliveira, Romero Jucá e dos filhos de Sérgio Cabral e Eduardo Cunha. 3- Em um cenário bastante adverso, impressiona a vitalidade do PT: elegeu a maior bancada e conseguiu levar Haddad ao segundo turno, mesmo com a impressionante campanha de criminalização e com a prisão de Lula. Quem apostou no extermínio petista foi obrigado a constatar que o enraizamento do partido é profundo, assim como a memória das suas contribuições segue presente no imaginário de parte considerável da população. É o PT, ainda hoje, a principal barreira de contenção do neoliberalismo autoritário representado por Bolsonaro. 4- A candidatura de Ciro Gomes, por sua vez, foi fundamental para a existência do segundo turno. Dialogou com um eleitorado progressista descontente com o PT e ofereceu uma alternativa democrática ao centro, impedindo que a movimentação subterrânea da última semana de campanha atingisse mais da metade dos votos. Ciro organizou um eleitorado expressivo, foi uma voz estridente contra o neoliberalismo e sobreviveu ao derretimento que tirou do cenário pela porta dos fundos as candidaturas de Marina e, principalmente, de Alckmin. Ciro é, no segundo turno, um aliado fundamental contra o atraso. 5- Apesar da força política demonstrada pelo PT, é urgente diagnosticar a queda dos votos do partido e da esquerda em quase todas as regiões do país; o cinturão vermelho do Nordeste, incluído de forma extraordinária nas políticas públicas durante os governos Lula e Dilma, é simbólico - uma resposta contundente contra os séculos de exclusão - mas insuficiente para constituir maioria eleitoral. É preciso atualizar a estratégia e o programa do partido, reorganizar e oxigenar os espaços da militância para recuperar a referência social perdida no Sudeste, maior colégio eleitoral do país, onde a derrota, em especial no Rio de Janeiro, foi avassaladora. 6- O grande êxito de Bolsonaro, até agora, foi consolidar a imagem de outsider: o candidato que não tem papas na língua, que enfrenta as adversidades, vítima de um bárbaro atentado e que, “usando apenas o seu wi-fi”, desestabilizou o sistema político. Ao ser retirado da cena pública, Bolsonaro tornou-se uma “ideia” subterrânea, ancorada em notícias falsas e células de mobilização ativadas pelas redes. Ouso dizer que reside na desconstrução desta imagem uma chave importante para enfrentá-lo. Bolsonaro é o movimento antissistêmico de salvação do próprio sistema: a derrubada do mundo político para que o mundo dos bancos possa tomar conta da economia sem intermediários, eliminados pelo voto, e sem oposição, esmagada pelo arbítrio. Pendurados em seus ombros estão megaempresários e banqueiros, consultorias financeiras que distribuíram “papers” explicando como um regime autoritário pode constituir um “bom ambiente para os negócios”. Em suma, o neoliberalismo se livra da democracia para aumentar a exclusão e a exploração. 7- Neste sentido, a radicalização da agenda econômica e social me parece fundamental para enfrentar Bolsonaro. Emprego, renda, segurança e serviços públicos de qualidade são dilemas que afetam a imensa maioria da população. Enfatizar a necessidade de manter a valorização do salário mínimo, a diminuição de impostos com a nova faixa de isenção do imposto de renda e a tributação dos milionários, com o imposto sobre lucros e dividendos e o combate às regalias aberrantes, como o não pagamento de IPVA de jatinhos, helicópteros, lanchas e iates; a retomada dos investimentos públicos que geram empregos e melhoram a infraestrutura e os serviços, o crédito fácil para fomentar o empreendedorismo, a mobilização democrática com os plebiscitos revogatórios das reformas que cortaram direitos, como a trabalhista, e a derrubada da PEC do teto de gastos para garantir a ampliação do SUS e da rede de educação. 8- Cabe um destaque especial para o tema da corrupção: é preciso enfrentá-lo, sem melindres ou moralismo barato, mas com propostas efetivas. Não é pequena a resistência ao PT por conta da construção de uma imagem de saqueadores do Estado. Sim, o PT é vítima de uma campanha difamatória grotesca, mas é fundamental dialogar com a parcela da população afetada por esta temática. Reforçar a imagem do candidato como inimigo da corrupção, incrementar mecanismos de fiscalização e controle e rechaçar fortemente qualquer possibilidade de conivência com desvios em um futuro governo Haddad. 9- Ao mesmo tempo, Bolsonaro precisa ganhar a pecha de inimigo dos direitos do povo: parlamentar fiel ao governo Michel Temer, chefe de uma equipe de bárbaros que, em poucas declarações, se comprometeram com menos impostos para os ricos e mais impostos para os pobres, atacaram férias e décimo-terceiro, versão repaginada da farsa que levou Collor ao poder em 1989 e que representa uma ameaça para a população mais pobre do país. Seu eleitorado não pode ser subestimado; é preciso reverter o movimento que levou parcelas significativas da população mais pobre na direção da sua candidatura, em especial na última semana de campanha. Cabe lembrar que, em 2006, Alckmin teve menos votos no segundo turno do que no primeiro, porque o acerto da campanha de Lula promoveu a reconciliação com um eleitorado que, no primeiro turno, votara contra o petista. 10- Por fim, dialogar ao centro sem que isto represente moderação programática, construindo um grande pacto democrático com a sociedade para a pacificação do país. Aumentar o engajamento cidadão da campanha, construindo milhares de células capazes de produzir discursos, rebater ataques e enfrentar boatos; disputar as ruas e praças contra a expressão autoritária da militância bolsonarista, retomar com vigor o debate público, fugindo das armadilhas discursivas que transformaram o primeiro turno em um espetáculo de manipulação de afetos e de escamoteamento do programa do candidato que liderou o processo; buscar pontes com setores econômicos (cada vez mais escassos) interessados na retomada de uma dinâmica de crescimento e de aquecimento do mercado interno; dialogar com segmentos políticos que perderam força, mas ainda mantêm alguma expressão política, sem, no entanto, trazê-los para a cena pública da campanha. Haddad não pode transformar-se em uma tábua de salvação para o sistema político rejeitado pelo povo, e sim a sua refundação democrática e cidadã, baseada na retomada da esperança e das oportunidades para o país. *Bernardo Cotrim é jornalista e militante do PT-RJ