"Carta de Bauru – 30 Anos" celebra avanços e denuncia desmontes na saúde mental

A Carta de Bauru, que completa este ano 30 anos, é um marco na luta antimanicomial por propor a substituição das internações por um tratamento mais humanizado, dando outra atenção aos pacientes com transtornos mentais

Cartaz de movimento de luta antimanicomial (Reprodução)Créditos: Reprodução
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A Carta de Bauru, que completa este ano 30 anos, é um marco na luta antimanicomial por propor a substituição das internações por um tratamento mais humanizado, dando outra atenção aos pacientes com transtornos mentais Da Redação* Foi realizado, nos dias 8 e 9 de dezembro, em Bauru, um encontro de profissionais da saúde mental e movimentos sociais para celebrar os 30 anos da luta por Uma Sociedade sem Manicômios. O encontro culminou com a elaboração do documento “Carta de Bauru – 30 Anos”. Ajude a Fórum a fazer a cobertura do julgamento do Lula. Clique aqui e saiba mais. A Carta de Bauru, que completa este ano 30 anos, é um marco na luta antimanicomial por propor a substituição das internações por um tratamento mais humanizado, dando outra atenção aos pacientes com transtornos mentais. A luta antimanicomial foi um marco no processo de redemocratização do país. E, assim como várias outras conquistas que ameaçam se desmantelar nestes tempos de golpe e radicalizações à direita, o grande avanço nos tratamentos da saúde mental pela qual o Brasil passou nas últimas décadas também começam a sofrer seus revezes. Leia abaixo o documento na íntegra: CARTA DE BAURU – 30 ANOS Há 30 anos, aqui em Bauru, denunciamos o papel de agentes da exclusão designado aos trabalhadores de saúde mental; afirmamos a defesa intransigente dos direitos humanos e da cidadania dos chamados loucos; compreendemos que a nossa luta faz parte da luta por uma transformação social ampla e verdadeira; reafirmamos o manicômio como mais uma forma de opressão da sociedade. Uma escolha foi feita e decidimos a nossa direção: rumo à uma sociedade sem manicômios! Movidos pela alegre energia de um tempo tão fecundo, quando a democracia brasileira se afirmava nos movimentos e nas ruas, seguimos fielmente o rumo desejado. Tomando a palavra, as pessoas em sofrimento psíquico defenderam seu direito de viver, trabalhar, conviver e criar nos espaços das cidades; organizados em movimento social, trabalhadores, estudantes, usuários e familiares sustentam unidos, desde então, a Luta Antimanicomial. Cientes de que a nossa causa era justa, fomos incansáveis ao lutar por ela. Construímos o projeto de lei antimanicomial, e trabalhamos por sua aprovação no Congresso Nacional. No desafio da implementação do SUS, construímos passo a passo, com efetiva participação social, expressas em quatro Conferências Nacionais, uma nova Política Nacional de Saúde Mental. Realizamos marchas, manifestações, passeatas, ofertando à sociedade brasileira o alegre sabor da liberdade ainda que tam tam. Descontruindo o modelo asilar, reduzimos significativamente os leitos em hospitais psiquiátricos, exercendo no território o cuidado em liberdade. Inventamos novos serviços e redes, arranjos e experiências, que gritam com voz forte a potência deste cuidado. Combatemos a cada dia o manicômio em suas várias formas, do hospital psiquiátrico à comunidade terapêutica, incluindo o manicômio judiciário; e a lógica manicomial que disputa o funcionamento de todos os espaços do viver. Gravamos, em corpos e mentes, a certeza de que toda a vida vale a pena, a ser vivida em sua pluralidade, diversidade e plenitude. Temos orgulho das conquistas que garantiram a transformação da atenção pública em saúde mental em todos os quadrantes de nosso país: milhares de CAPS, ações na atenção básica, o Programa de Volta Pra Casa, novos modos de trabalhar e produzir, múltiplos projetos de arte, cultura, economia solidária, geração de trabalho e renda e protagonismo. Assumimos o desafio de construir uma política de cuidado às pessoas em uso de álcool e outras drogas, como uma política para as pessoas, antiproibicionista e pela legalização do uso, na perspectiva da redução de danos, produzindo uma atenção intrinsicamente conectada com a defesa de seus direitos. Com a exigência do cuidado para a infância e juventude, enfrentamos a medicalização das crianças e a criminalização dos jovens. A presença protagonista de crianças e adolescentes e seus familiares nesse Encontro é um marco histórico e indica a importância da continuidade e avanço das políticas públicas de saúde mental intersetoriais para crianças e adolescentes na perspectiva do cuidado sem controle, garantindo seu direito à voz para a construção de uma sociedade livre de manicômios. Cuidar da infância e da adolescência em liberdade é fundamental na nossa luta! Nestes 30 anos, entretanto, o mundo viveu a globalização e a hegemonia da ideologia neoliberal, produzindo uma gritante desigualdade: 1% da população mundial tem mais riquezas que os outros 99%. Isto conduziu a uma ruptura do pacto civilizatório contido na Declaração Universal dos Direitos Humanos: quando os interesses do capital tudo dominam, não há direito que se respeite nem vida que tenha valor. No Brasil, um processo de redução das desigualdades sociais, iniciado nos anos 2000, foi brutalmente interrompido pelo golpe de 2016; golpe que resultou, dentre tantos outros efeitos deletérios, na ampliação do processo vigente de privatização e na redução de recursos para as políticas públicas sociais, como moradia, transporte, previdência, educação, trabalho e renda e saúde. Vivemos um violento ataque ao SUS, com a diminuição do financiamento e a desfiguração de seus princípios de universalidade, equidade e integralidade. Nossa democracia, ferida, vive hoje sob constante e forte ameaça. Precisamos fortalecer a luta por um processo de educação permanente, por nenhum serviço a menos, nenhum trabalhador a menos e nenhum direito a menos. Apesar desses graves retrocessos e dos riscos crescentes, os efeitos destes anos de livre e amoroso cuidado são indeléveis e duradouros. Acesa e viva, mantém-se a nossa disposição de lutar contra tudo aquilo que é intolerável para a dignidade das pessoas e nefasto para o seu convívio enquanto iguais: a exploração e a ganância, o manicômio e a tortura, o autoritarismo e o Estado de exceção. Tecemos laços de afeto e de solidariedade que nos acolhem na dor e nos protegem no abandono - sustentando o delicado equilíbrio da esperança em nossos corações. Portanto, prosseguimos, com o mesmo empenho tenaz, na luta por uma sociedade sem manicômios. Não podemos deixar de frisar o avanço do conservadorismo e da criminalização dos movimentos sociais, defendemos a diversidade sexual e de gênero, as pautas feministas, a igualdade racial. Somos radicalmente contra o genocídio e a criminalização da juventude negra, a redução da maioridade penal, a intolerância religiosa e todas as formas de manicômio, que seguem oprimindo e aprisionando sujeitos e subjetividades. Apontamos a necessidade urgente de articulação da Luta Antimanicomial com os movimentos feministas, negro, LGBTTQI, movimento da população de rua, por trabalho, moradia, indígena entre outros, a fim de construirmos lutas conjuntas. A conjuntura presente, que intensifica o risco das conquistas duramente obtidas, exige um posicionamento que reafirme e radicalize nossos horizontes. É preciso sustentar que uma sociedade sem manicômios reconhece a legitimidade incondicional do outro como o fundamento da liberdade para todos e cada um; que a vida é o valor fundamental; que a sociedade sem manicômios é uma sociedade democrática, socialista e anticapitalista. NENHUM PASSO ATRÁS: MANICÔMIO NUNCA MAIS! POR UMA SOCIEDADE SEM MANICÔMIOS! Bauru, dezembro de 2017 Foto: Divulgação