César Menotti, ao estigmatizar o samba, se esquece dos preconceitos contra o sertanejo

O samba sempre foi alvo de preconceito. Um preconceito que, o que é mais surpreendente, muito parecido com o sofrido pelos caipiras, sertanejos e afins

Roda de Samba, de Caribé. Foto: Reprodução
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“Samba é música de bandido”. A respeito da infeliz frase, dita em tom de brincadeira pelo sertanejo César Menotti, durante o programa “Altas Horas”, de Serginho Groisman, há um mundo de coisas a serem ditas. A primeira e mais óbvia é que se trata, sim, de uma frase acima de tudo racista. A relação, de tão óbvia, chega a ser simplista. O samba é negro. É uma das maiores, senão a maior, das colaborações dos afro-brasileiros à nossa cultura. Menotti, como todo sertanejo, é contador de causos, - um outro traço cultural – e lembrava que, durante um show em uma penitenciária, os detentos insistiam em pedir que eles, César Menotti e Fabiano, tocassem samba. O desfecho do causo foi a frase idiota. A primeira a responder foi a cantora, deputada estadual e ativista Leci Brandão (PCdoB-SP), que partiu pra cima, colocando em suspeição os megassucessos televisivos e seus métodos para chegar ao sucesso: “Samba não é música de bandido não. Bandidagem é quem compra a mídia pra gente ter que ouvir um monte de música que não traz nenhuma consciência; bandidagem é quem consegue fazer com que a cultura seja toda direcionada pra quem tem poder”. O próprio Menotti, diante do tamanho da besteira, tentou consertar no dia seguinte, na sua conta do Instagram: “O texto sem contexto vira pretexto. Uma piada, mesmo que tenha sido de mal gosto não representa minha opinião. Respeito o samba e principalmente os artistas e fãs que defendem essa bandeira da cultura nacional, peço perdão aos que se ofenderam, mas definitivamente uma piada não é uma opinião”. É obvio que é uma piada. E é óbvio que é uma opinião. Exatamente igual a toda e qualquer outra piada racista e excludente, que revela o que de pior herdamos e conservamos do nosso passado escravagista. O samba é, acima de tudo, resultado de uma profunda e sofrida resistência cultural, que passou – e de certa forma passa ainda e o causo de Menotti é um exemplo disso – por humilhações, arbitrariedades e injustiças. A lágrima clara sobre a pele escura, na linda imagem de Caetano Veloso, do sambista que passou o diabo e sofreu a cântaros, é reveladora. O nosso sinônimo maior de alegria e talento não teve vida fácil até chegar a ter o seu espetáculo maior retransmitido em cadeia nacional, atraindo turistas de todo o mundo. Um espetáculo que, apesar de todas as deformações e concessões à rede de TV que o transmite, continua a nos deslumbrar, exaltar e dignificar. O samba sempre foi alvo de preconceito. Um preconceito que, o que é mais surpreendente, muito parecido com o sofrido pelos caipiras, sertanejos e afins, tidos historicamente nas grandes cidades como figuras ignorantes, menores. Um preconceito que é muito fácil de se encontrar, por exemplo, entre os jovens urbanos “descolados”, que desprezam a nossa música sertaneja e basta ler várias reações nas redes sociais à frase de Menotti, repito, desastrosamente infeliz. A cultura brasileira que se dissemina e industrializa, que é absorvida pela cultura de massas é feita pelo povo. É resultado do dia a dia das senzalas, plantações, das obras urbanas de construção civil, enfim, do nosso povo pobre e marginalizado. O povo que, muitas vezes, é confundido, taxado e subjugado como bandido. E é graças à resistência de gracinhas como essa de César Menotti que até mesmo a sua própria música insistiu em existir até hoje.