CNJ abre investigação sobre "passarela da adoção", que expôs crianças em shopping no MT

Associação Juízes para a Democracia (AJD) divulgou nota de repúdio, na qual afirma que “a iniciativa nos faz retroceder no tempo e nas conquistas e nos remete às feiras de escravos”

"Passarela da Adoção" expõe crianças a pretendentes a pais (Reprodução)
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A Corregedoria Geral de Justiça de Mato Grosso deverá enviar ao Conselho Nacional de Justiça informações sobre o evento “Adoção na Passarela”, desfile de crianças aptas para adoção realizado no Pantanal Shopping, em Cuiabá, na última terça-feira (21). O corregedor nacional de Justiça, ministro Humberto Martins, instaurou, de ofício, pedido de providência. Segundo o CNJ, o evento foi autorizado pela juíza de direito da 1ª Vara Especializada da Infância e Juventude, Gleide Bispo Santos, e teve o apoio da Comissão de Infância e Juventude da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Mato Grosso. O presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, Helder Salomão (PT-ES), reagiu com indignação à notícia. Para ele houve uma exposição “desnecessária e inaceitável de crianças”, que deveriam receber a proteção e a tutela do Estado e foram colocadas em situação constrangedora que pode acarretar em maior sofrimento emocional. A Associação Juízes para a Democracia (AJD) divulgou nota de repúdio, na qual afirma que “a iniciativa nos faz retroceder no tempo e nas conquistas e nos remete às feiras de escravos”. “Há várias outras formas e campanhas para adoção que não expõem as crianças e adolescentes e nem os revitimizam”, afirma a entidade. Leia a anota da AJD NOTA PÚBLICA DA AJD EM REPÚDIO AO EVENTO DENOMINADO “ADOÇÃO NA PASSARELA” A Associação Juízes para a Democracia REPUDIA o evento denominado “Adoção na Passarela”, realizado no dia 21/05/2019 pela Associação Mato-Grossense de Pesquisa e Apoio à Adoção (Ampara) em parceria com a Comissão de Infância e Juventude (CIJ) da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Mato Grosso (OAB-MT). O Estatuto dos Adolescentes foi uma construção de Direitos Humanos da população infantojuvenil, razão especial do CONANDA – Conselho Nacional dos Direitos da Crianças e Adolescentes ter seu locus no ordenamento nacional, nos Ministérios e Secretarias de Direitos Humanos. O ECA foi uma importante conquista civilizatória para esta população, clientela que até então, por ser tratada como objeto de intervenção, tinha parcela de seus direitos sonegados. Com o abandono do Código de Menores e a publicação do Estatuto, que já data de quase 30 anos, uma das quebras paradigmáticas mais significativas foi a elevação de crianças e adolescentes à categoria de Sujeitos de Direitos, abandonando a velha prática tutelar de objeto. Como objetos que eram qualificados, tudo podia ser feito sob o manto do “interesse superior do menor”. Aliás, com essa prática tutelar, barbaridades e um leque de violações eram praticados contra os ditos “menores”. O Estatuto ao longo de sua existência, sofreu uma série de alterações, sendo que a chamada “Nova Lei de Adoção”, nada mais foi do que algumas alterações no próprio Estatuto e que tinha como um dos principais objetivos reforçar o direito de crianças e adolescentes a uma convivência familiar e comunitária. Num primeiro momento luta-se pelo direito a uma convivência no seio de sua família biológica de origem e, quando isso não se torna possível, noutras formas de colocação em família substituta sob as modalidades de guarda e adoção. No ECA, dentre outros direitos inalienáveis e invioláveis, como sujeitos de direitos que são as crianças e adolescentes, está o da preservação de sua identidade e sua imagem, com o fito de defender-lhes de exposição a situações de violações de seus direitos e até mesmo vexatórias, quando em seu artigo Art. 17 dispõe: ” O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.”, e em seu art. 18. Estabeleceu que “É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.” O denominado evento “Adoção na Passarela”, com o intuito de dar “visibilidade à crianças e adolescentes de 04 a 17 anos que estão aptas para adoção”, não só violou as garantias acima, como expôs de forma duvidosa, para não dizer desumana, às graves situações de extrema vulnerabilidade emocional e social a que estão expostos. O evento se assemelha mais a uma “feira de adoção”, expondo crianças e adolescentes como objetos, como mercadorias de consumo e, ademais utiliza as crianças e adolescentes como instrumento de propaganda para os “parceiros”. Nos termos propostos, a iniciativa nos faz retroceder no tempo e nas conquistas e nos remete às feiras de escravos. Mesmo que houvesse o aval de crianças e adolescentes, sabe-se que estes são sujeitos em desenvolvimento e não têm a maturidade para decidir sobre suas exposições, cabendo aos adultos envolvidos, especialmente Ministério Público, Juízes e Defensoria zelar para que não ocorresse tamanha exposição. Esses garantes não podem falhar a ponto de compactuarem com tamanha mercantilização dessas crianças e adolescentes acolhidos. São garantes não apenas legais dos direitos desta clientela, mas têm, sobretudo, um dever ético. Ministério Público, Judiciário e Defensoria, são pilares éticos das crianças e adolescentes que se encontram nessas situações de tutela pelo Estado. Há várias outras formas e campanhas para adoção que não expõem as crianças e adolescentes e nem os revitimizam. No mencionado evento, além de serem ofertados como produtos, e não como sujeitos que são, corre-se o potencial risco de não serem adotados, mas serem revitimizados, gerando novo sentimento de abandono e lhes causando sérios impactos psicológicos, frustrações e dor pela rejeição. Os fins não podem justificar os meios, ao ponto de, sob o fundamento de se buscar uma família para eles, expô-los a tamanha mercantilização, violando-lhes suas imagens e integridades psíquica e moral. Por estas razões, a AJD, reiterando seu compromisso com a proteção integral dos direitos da criança e do adolescente repudia a proposta da “adoção na passarela”, como uma inciativa que fragiliza seus direitos e os expõe em sua vulnerabilidade. São Paulo, 23 de maio de 2019.