Daniel Trevisan Samways: “O neoliberalismo autoritário”

A História nos ensina que os povos sempre se insubordinam e se rebelam, por mais violenta que seja a repressão. Mas também nos mostra que governos autoritários, por mais longevos que possam ser, não duram para sempre. Não será diferente com o neoliberalismo

(Foto: Marcos Corrêa/PR/FotosPúblicas)
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[caption id="attachment_136524" align="alignnone" width="1024"] Foto: Marcos Corrêa/PR/Fotos Públicas[/caption] Por Daniel Trevisan Samways* Ao longo do século XX, uma das grandes disputas no campo político foi entre diferentes modelos de Estado e em que medida ele deveria interferir na vida dos cidadãos. De um lado, um discurso em defesa de uma sociedade livre, sem amarras e sem controle, na qual não apenas os indivíduos teriam plena liberdade, mas também o mercado caminharia solto. De outro, os defensores de um Estado mais presente, atuando de forma mais incisiva na economia, garantindo serviços públicos a todos e atuando como provedor, desde a moradia até a renda e a alimentação aos mais carentes. Essa disputa foi influenciada, sem dúvida, pela polarização entre os chamados blocos socialista e capitalista, mas vai muito além dela. A gestão do Estado e de sua economia passa, em primeiro lugar, pela própria ótica do capital e em como os recursos públicos e privados podem ser melhor gerenciados e, claro, potencializados. Uma economia controlada de forma mais contundente pelo governo pode interessar ao mercado. Afinal, como diziam os teóricos do liberalismo clássico, se alguém está interessado em comprar, sempre existirá alguém querendo vender, e fazê-lo ao Estado pode ser um excelente negócio. A chamada Era de Ouro do capitalismo foi exatamente isso. Essas breves reflexões podem nos ajudar a entender o atual cenário brasileiro. Muitas análises apressadas afirmam que o neoliberalismo é simplesmente uma diminuição do Estado, e que a economia passa a ser desregulamentada, deixando o mercado atuar livremente sem a interferência estatal. Será? O que assistimos nos últimos dois anos, desde o chamado golpe de 2016, mas também antes dele, foi uma verdadeira tomada do Estado pelo mercado. Segundo Pierre Dardot e Christian Laval, em A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal, o neoliberalismo está longe de ser uma mera diminuição do Estado, mas, antes, um Estado controlado pelo mercado. E foi em meio a essa areia movediça que lutamos para sobreviver nos últimos dois anos, com o avanço ainda maior do setor financeiro dentro do aparelho estatal. O mercado passou a ocupar postos essenciais na administração pública, desde a Fazenda, passando pela Saúde, Educação e Agricultura, os maiores orçamentos da União – depois da dívida pública, controlada também pelo mercado. A palavra “desregulamentação” precisa ser analisada com mais cuidado, para não cairmos na tentação de achar que o Estado deixa de controlar a economia. O que existe, ao contrário, é um mercado criando novas leis dentro da máquina pública através de deputados, senadores e do presidente da República, contando com a caneta mágica do poder judiciário e seus acordos de leniência milionários. Ou bilionários, a depender do réu. O mercado é extremamente regulado e garantido. Leis para isentar lucros e dividendos, para garantir juros melhores e rentáveis, mas também para punir o indivíduo que deve. Experimente não pagar o empréstimo ao banco ou atrasar a fatura do cartão de crédito. Está tudo na lei, regulamentado. Mas o neoliberalismo guarda, a despeito de uma falsa propaganda em defesa das “liberdades”, uma faceta autoritária. Assistimos, ao longo desses últimos dois anos, um aumento significativo da repressão contra os setores mais pobres, mas também a aliança entre o setor financeiro e aqueles que podemos denominar como “conservadores”. E tal aliança se dá por meio de parcerias em todos os poderes da República, com a garantia de orçamento público para alimentar aqueles que falam aos quatro ventos sobre a necessidade de não se dar o peixe, mas de ensinar a pescar, e, por outro, no aumento da repressão e da tecnologia que a envolve. São criadas novas armas para coibir manifestações; as polícias ganham armas cada vez mais letais; as Forças Armadas passam a interferir no espaço público, atuando como garantidores da ordem – e, principalmente, do capital -; projetos que visam, de alguma forma, censurar as artes e a educação avançam a passos largos e são apoiados por aqueles que se vendem como liberais, como o MBL; a privatização de setores estratégicos, entregando nossas riquezas ao setor privado, mas beneficiando agentes públicos; e, por fim, o aumento de um verdadeiro Estado de exceção, com o mercado atuando como o soberano, como nos lembra a preciosa análise de Rafael Valim, em Estado de exceção: a forma jurídica do neoliberalismo. Esse neoliberalismo autoritário fez e fará de tudo para se perpetuar no poder, controlando não apenas suas próprias finanças, mas também, e principalmente, o orçamento público. Atuará para impedir que estudantes consigam criar uma visão crítica, seja patrocinando projetos como o Escola Sem Partido, seja vendendo materiais didáticos e sistemas de ensino ao poder público que difundem ideias e valores como o empreendedorismo e a meritocracia. Vai costurar junto a deputados e senadores reformas na lei para baratear o custo da produção e diminuir ainda mais as garantias dos trabalhadores, mas também para aumentar a segurança de investimentos financeiros. Visará, por fim, controlar a sociedade, vigiando toda a nossa comunicação ou reprimindo todo e qualquer protesto, vendendo armas e novos computadores e sistemas ao Estado. Mas o que não sabem é que existem brechas. E será através delas que construiremos a resistência. A História nos ensina que os povos sempre se insubordinam e se rebelam, por mais violenta que seja a repressão. Mas também nos mostra que governos autoritários, por mais longevos que possam ser, não duram para sempre. Não será diferente com o neoliberalismo. Contudo, dependerá de nós o tipo de resistência que iremos construir e de que maneira iremos lutar. *Daniel Trevisan Samways é doutor em História pela Universidade Federal do Paraná e professor do Instituto Federal do Triângulo Mineiro (IFTM)