Daniel Trevisan: Se não temos nada a celebrar neste março, temos muito a fazer e lutar

Não podemos falar, ainda, que vivemos em uma ditadura. Mas tampouco podemos dizer que vivemos na normalidade democrática

Foto: Agência Brasil/Arquivo
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Por Daniel Trevisan Samways* Em agosto de 1969, o professor José Maria Orreda escreveu um pequeno texto afirmando que o Colégio São Vicente, na cidade de Irati, interior do Paraná, fecharia as portas por falta de recursos. Usou seu pequeno jornal, O Debate, para expressar sua indignação com a atitude do governo estadual, o qual possuía um acordo com a Congregação Vicentina para o funcionamento do colégio, mas não estava honrando seus compromissos e os padres não tinham como pagar a fatura de energia elétrica. Na semana seguinte, foi intimado a prestar esclarecimentos na Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS) em Curitiba. Ele foi denunciado pelo então Inspetor de Ensino na cidade, Gui Xavier. Alguns dias depois, em outra edição, escreveria sobre a liberdade. Ou melhor, a falta dela. Era o tempo da ditadura, os anos de chumbo. Pessoas eram presas, torturadas e centenas ainda estão desaparecidas. Censura às artes e à imprensa. Tempos de luta armada e exílio, acompanhados de arrocho salarial e do aumento da desigualdade. Alguns, por outro lado, vibravam com a presença dos militares, da ordem e do nacionalismo, e um ano depois cantariam a música de Miguel Castro “Pra frente Brasil”. Orreda foi um pacato professor de uma cidade interiorana, que nunca teve ligação com o comunismo e muito menos com a luta armada. Mesmo assim, sofreu durante a ditadura. Não foi torturado, mas experimentou uma violência psicológica, o medo e a ansiedade do interrogatório, de ser acusado de conspirar contra o governo, contra a pátria. Nessa mesma cidade interiorana, imperava o mandonismo local, com poucas famílias controlando a política e também elegendo seus representas no poder legislativo estadual e federal. Da cidade saíram dois governadores neste mesmo contexto. Não foram eleitos de forma democrática, claro, mas de forma indireta. A ditadura já foi analisada de forma intensa pela historiografia, como a repressão, a luta armada, o exílio, a censura e também os apoios, o consenso, o que já afastaria qualquer possibilidade de relativização e negação dos crimes cometidos por agentes do Estado e patrocinados por grandes empresários. Mas muito ainda pode ser analisado. A ditadura afetou milhares de pessoas, não apenas àquelas que sofreram alguma violência física. Talvez, parte dessas pessoas tenha sido espionada sem nunca ter desconfiado. Ao analisar a gigantesca documentação produzida pelos órgãos de informação e vigilância, percebemos uma enorme paranoia contra tudo e contra todos, buscando esquadrinhar a vida de indivíduos, mapear seu comportamento e suas relações. E é exatamente desse Estado autoritário e violento que nosso atual presidente sente saudades. O período ditatorial vai muito além da repressão a grupos de esquerda que adotaram a estratégia da luta armada. A violência e o autoritarismo permearam a vida cotidiana da sociedade brasileira, difundindo o medo e o terror. Por certo, sempre aparecerá aquele parente no almoço de domingo para relembrar que na “época dos militares é que era bom”. Encontraremos discursos semelhantes em praticamente todos os regimes autoritários ao longo da história. Enquanto pessoas sofrem a força da repressão, alguém se beneficia e aplaude. Regimes autoritários precisam de inimigos. Vão criá-los ou fortalecê-los, dependendo do contexto. A presença de uma forte ameaça justifica as ações do líder autoritário, unem a massa em torno dos símbolos nacionais, exatamente aqueles que estão supostamente em perigo com a presença dos inimigos. Logo, a violência torna-se legítima, bem-vinda, tudo em nome da pátria, da família e dos justos valores. Em que medida nos aproximamos disso nos dias que se seguem? Não podemos falar, ainda, que vivemos em uma ditadura. Mas tampouco podemos dizer que vivemos na normalidade democrática. Quantas vezes você, nobre leitor, teve receio em sair com uma roupa que pudesse ser identificada com algum movimento político? Você teve algum receio em fazer campanha na última eleição? Pensou duas vezes em colocar o adesivo de um candidato que não fizesse sinal de uma arma? Deixou de questionar uma opinião contrária e arbitrária com medo de alguma retaliação? Os sinais que vêm de Brasília são muito preocupantes e deveriam ligar todas as luzes de alerta. Importantes ministérios foram ocupados por fanáticos e reacionários que buscam impor uma agenda totalmente contrária aos ideais democráticos e plurais. Tudo isso em meio à tentativa de uma reforma ultraliberal que visa a destruição do que resta dos serviços públicos e de uma Previdência realmente pública e justa. Somos assolados pelos interesses do mercado que não se importa em abraçar setores reacionários, fundamentalistas e violentos. Tudo em nome do lucro. Mas também em nome de algo maior. Contudo, em meio ao caos, sempre pode surgir a esperança e alguma forma de resistência. Se hoje ela não é a mesma do que foi no passado, com partidos e sindicatos organizados, ela pode emergir em movimentos populares e em torno de pautas identitárias. A chave está em transformar esses movimentos numa grande luta contra a opressão, contra as dificuldades impostas por um sistema capitalista desumano e cruel que cria o desemprego e piora as condições de vida. Essa luta pode acontecer e a história nos ensina que ela pode eclodir a partir de variadas condições e catalisar diferentes segmentos sociais em torno de uma pauta comum: o interesse popular. Se não temos nada para celebrar neste março de 2019, temos muito a fazer e lutar. Precisamos combater discursos autoritários e saudosistas da ditadura, mas também organizar formas de resistir a esse governo. “Faz escuro mas eu canto, porque a manhã vai chegar. Vem ver comigo, companheiro, a cor do mundo mudar. Vale a pena não dormir para esperar a cor do mundo mudar. Já é madrugada, vem o sol, quero alegria, que é para esquecer o que eu sofria. Quem sofre fica acordado defendendo o coração. Vamos juntos, multidão, trabalhar pela alegria, amanhã é um novo dia.” Thiago de Mello *Daniel Trevisan Samways é doutor em História e professor no Instituto Federal do Triângulo Mineiro (IFTM)
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.