Dona Ivone Lara precisou ter sido genial para furar a bolha machista das escolas de samba

“Sonho Meu” serviu de hino involuntário da campanha da anistia, em 1979

Dona Ivone Lara. Foto: Natalia Bezerra/Fotos Oficiais da Virada Cultural 2008
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Um clichê é sempre repetido quando se fala em Dona Ivone Lara. Ela é a primeira mulher a ser da ala de compositores de uma grande escola de samba do Rio de Janeiro, a Império Serrano. O fato aconteceu em 1965, com o lindo samba “Os cinco bailes da história do Rio”. De lá pra cá, no entanto, pouco ou quase nada mudou. O ambiente das escolas de samba, particularmente das suas alas de compositores, continua a ser amplamente dominado mesmo pelos varões. Dona Ivone Lara precisou ter sido genial para furar este cerco. Ela é uma compositora maravilhosa em qualquer contexto e entre qualquer gênero. Os seus sambas são lindos, do primeiro time, comparáveis aos maiores e nunca houve a menor indulgência com relação a ela pelo fato de ser mulher. Muito ao contrário, Dona Ivone só chegou lá porque seus sambas estão no mesmo nível de Paulinho da Viola, Martinho da Vila, Cartola e qualquer um desses grandes sambistas. Quem duvidar que ouça com atenção seus discos, as regravações de suas canções, enfim, tudo o que produziu. E, o que é pior, produziu livremente já bem tarde. Era enfermeira e se aposentou com 56 anos, quando, finamente, passou a fazer o que mais amava, ou seja, alguns dos sambas mais lindos da nossa história. Foi gravada por uma infinidade de intérpretes, muitos deles que saltavam para fora da bolha do samba: Clara Nunes, Roberto Ribeiro, Maria Bethânia, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Paula Toller, Paulinho da Viola, Beth Carvalho, Mariene de Castro, Roberta Sá, Marisa Monte e Dorina. Teve alguns sucessos inesquecíveis que marcaram definitivamente as últimas décadas, como “Sonho Meu”, “Alguém me Avisou”, o emblemático “Sorriso Negro” entre tantos outros. A versão de “Sonho Meu” no disco “Álibi”, de Maria Bethânia, de 1978, com a participação de Gal Costa, foi um sucesso enorme que iluminou o Brasil. Havia naquele samba lindo e naquela versão a magia inesperada do encontro de gerações e de localidades. A carioca autora e as duas baianas intérpretes se percebiam e se reencontravam na sua origem, na mesma matiz afrodescendente espalhada ao longo do litoral brasileiro. Além disso, talvez involuntariamente, o samba serviu de hino para a campanha da anistia, que viria a explodir no ano seguinte, com o objetivo de trazer de volta ou tirar do cárcere inúmeros presos políticos da ditadura militar: Sonho meu, sonho meu Vai buscar quem mora longe, sonho meu Sonho meu, sonho meu Vai buscar quem mora longe, sonho meu Vai mostrar esta saudade, sonho meu Com a sua liberdade, sonho meu No meu céu a estrela guia se perdeu E a madrugada fria só me traz melancolia Sonho meu Mas Dona Ivone, como todo grande artista, foi mais longe. Mestre em sinuosas melodias e letras certeiras, compôs sambas que, apesar de não terem tido a mesma explosão de sucesso, são exemplos de maestria na forma e conteúdo, perfeição de criação, enfim, genialidade sem fim. Um deles é o lindo samba “Minha Verdade”, uma especie de epitáfio antecipado de alguém que, mesmo tardiamente, se entregou de corpo e alma a sua paixão e nos deixou uma das maiores obras da nossa canção popular. E a nós, so resta agradecer. Eu tenho a minha verdade Fruto de tanta maldade que já conheci Me deixa caminhar a minha vida Livremente O que desejo é pouco Pois não duro eternamente Nada poderá me afastar do que eu sou Amor, é o meu ambiente Nada poderá me afastar do que eu sou Me deixa, por favor Do bom samba sou escravo Seu fascínio me apertou Traçou-me este destino Meu sonho menino se concretizou Deixe-me agora sonhar E seguir sem pensar numa desilusão Que o amor simplesmente Se faça presente no meu coração