Douglas Belchior: “Exigimos a saída imediata do comandante da Rota”

Em entrevista à Fórum, o ativista do movimento negro, Douglas Belchior, falou sobre a declaração do novo comandante da Rota (SP), que defende que a PM atue de maneira distinta em bairros nobres da maneira como atua nas periferias. “Quando verbaliza essa prática, ele dá ordens para que seus comandados atuem como criminosos”. Leia

Escrito en POLÍTICA el
Em entrevista à Fórum, o ativista do movimento negro, Douglas Belchior, falou sobre a declaração do novo comandante da Rota (SP), que defende que a PM atue de maneira distinta em bairros nobres da maneira como atua nas periferias. “Quando verbaliza essa prática, ele dá ordens para que seus comandados atuem como criminosos”. Leia Por Ivan Longo Coletivos, entidades e movimentos sociais enviaram, nesta sexta-feira (25), uma petição ao governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), em que cobram explicações sobre as declarações dadas pelo novo comandante das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (ROTA), da PM de São Paulo. Em entrevista, o comandante Ricardo Augusto Nascimento de Mello Araújo defendeu que PM atue de maneira diferente em um bairro nobre, como os Jardins, da que atua nas periferias, reforçando a distinção de tratamento de acordo com a classe social. Dois estudos recentes sobre violência revelaram dados estarrecedores. O Atlas da Violência 2017 mostrou que os negros são as maiores vítimas de homicídio no Brasil, muitos deles causados por policiais. A cada 100 pessoas assassinadas no país, 71 uma são negras, aponta a pesquisa. Um outro estudo, este realizado pela própria secretaria de Segurança Pública de São Paulo, mostra que o número de pessoas mortas pela polícia do estado no primeiro semestre de 2017 é o maior em 14 anos. É neste cenário que o novo comandante da Rota deu, esta semana, a seguinte declaração. “É uma outra realidade. São pessoas diferentes que transitam por lá. A forma dele abordar tem que ser diferente. Se ele [policial] for abordar uma pessoa [na periferia], da mesma forma que ele for abordar uma pessoa aqui nos Jardins [região nobre de São Paulo], ele vai ter dificuldade. Ele não vai ser respeitado (…) “Se eu coloco um policial da periferia para lidar, falar com a mesma forma, com a mesma linguagem que uma pessoa da periferia fala aqui no Jardins, ele pode estar sendo grosseiro com uma pessoa do Jardins que está ali, andando”. Para Douglar Belchior, ativista da UneAfro Brasil e e editor do blog Negro Belchior, a fala do comandante “assusta” pois, apesar de não apresentar nenhuma novidade com relação à atuação da PM de São Paulo, legitima ainda mais a prática da violência contra a população negra e periférica e reforça o racismo institucional enraizado na polícia. “O comandante, quando verbaliza essa prática, ele está autorizando seus comandados a agirem com ainda mais violência nesses lugares. Ele está, de maneira direta, quando formulou essa fala, dando ordens para que seus comandados ajam fora da lei, atuem como criminosos”, afirmou, em entrevista à Fórum. Belchior, que foi um dos signatários da petição da sociedade civil enviada ao governo de São Paulo, defende a saída imediata do comandante. “A gente não pode ter no comando uma voz que orienta seus comandados a cometer crimes contra a população negra do estado de São Paulo”, disse. Confira a íntegra da entrevista. Fórum - Douglas, como ativista do movimento negro, como você recebeu essa declaração do comandante da Rota defendendo uma abordagem diferente entre bairros como Jardins e periferia? Douglas Belchior - Me causou certa surpresa por que normalmente quem ocupa esses postos de comando são cuidadosos com as palavras, tem que sempre tomar cuidado para não afirmar o óbvio, para não colocar suas palavras acima das provas. Sobretudo na área da segurança pública. Então, causou uma estranheza essa sinceridade, por um lado, mas por outro me deixou muito assustado por que a forma natural como ele trata uma questão tão grave, classificando cidadãos como de segunda classe, como merecedores de um tratamento violento enquanto outros não, é muito grave. Fórum - Todos sabemos que, na prática, a PM já faz essa distinção de tratamento de acordo com a raça, classe social, localização geográfica, etc. Acredita, no entanto, que a declaração do comandante possa intensificar ou legitimar ainda mais, entre os policiais, essa prática? Belchior - Sim, não é nenhuma novidade, por que a polícia tem uma prática habitual no sentido de se comportar de maneiras diferentes, uma vez que ela existe principalmente como um órgão à serviço do estado e à serviço das elites, à serviço de quem ocupa poder, à serviço daqueles que detém patrimônio. E por isso ela tem uma postura à serviço dos donos de patrimônio nos bairros nobres, nos grandes centros, protegendo os prédios, as empresas, os bancos, e por outro lado tem uma postura de repressão nos territórios superocupados por negros, por trabalhadores, por pobres de todas as cores. Então, não é nenhuma novidade. Mas, ao mesmo tempo, o comandante, quando verbaliza essa prática, ele está autorizando seus comandados a agirem com ainda mais violência nesses lugares. Ele está, de maneira direta, quando formulou essa fala, dando ordens para que seus comandados ajam fora da lei, atuem como criminosos. Tratando cidadãos de maneira diferente, reprimindo em um lugar e cuidando em outro lugar. Na medida do perfil, das características geográficas, territoriais, sociais e raciais. Fórum - O ouvidor da Polícia já enviou ofício à SSP solicitando "providências" quanto à declaração, que ele considerou "elitista". Levando em consideração que a maior parte da população das periferias é negra, é possível afirmar que a declaração do comandante é também racista? Belchior - É óbvio que a declaração que ele faz é profundamente racista. Não é pouco racista na medida em que periferia é um sinônimo de território negro. A política se segurança pública no estado brasileiro sempre foi genocida. Sempre foi uma política, repito, de manutenção de privilégios, do status quo, e da segurança e do cuidado de quem detém patrimônio, e de repressão permanente àqueles que podem oferecer algum risco a esse patrimônio, sobretudo aquela população que acumula estigmas históricos, que são colocadas, historicamente, como as que colocam em risco esse patrimônio e essa população detentora de poder e de riquezas. Fórum - Fora a petição enviada, de que outras maneiras o movimento negro e a sociedade civil como um todo podem fazer frente, na sua opinião, à esse racismo institucionalizado na polícia? Belchior - Então, essa política de segurança pública ela só será passiva de uma mudança radical, verdadeira, que traga resultados para a vida concreta do povo trabalhador e da população negra que convive com as violências nessas comunidades, na medida em que a gente tiver um novo projeto político colocado em prática a partir do comando do estado, a partir do usufruto desse espaço de poder. Então, esperar que isso aconteça em um governo do Doria ou do Alckmin, ou qualquer governo de direita, sobretudo nesse período de maior avanço conservador, reacionário e fascista, é esperar demais. Mas o papel do movimento é continuar cobrando. Alckmin, enquanto mantém um comandante da Rota que orienta seus comandados a agir de maneira criminosa, ele é diretamente responsável por todos os resultados das incursões dessa polícia, não só da Rota, mas da corporação militar como um todo. Mas o fato é esse, eles estão à serviço da repressão do povo negro, e nosso papel é continuar exigindo o mínimo de seriedade e de respeito aos direitos humanos, de respeito aos princípios do estado democrático de direito. Embora isso esteja super fora de moda no Brasil, embora a gente viva um clima bastante desfavorável, o papel do movimento é esse. Assim como o papel do ouvidor também é esse e ele tem cumprido. Mas é uma voz que ecoa solitária nesses espaços, infelizmente. O que a gente tem que fazer é dar divulgação a esse tipo de procedimento, a esse tipo de deslize. O que o comandante cometeu foi um deslize. Ele não pode dizer o que disse. Não pode oferecer provas para os atos contínuos do estado. O papel dele é dissimular. E dessa vez ele não conseguiu. Então, nós temos que aproveitar essa deixa. Em outros momentos nós já tivemos documentos assinados por comandos da PM direcionando o trabalho da polícia para a repressão de negros, nós tivemos isso agora em 2013 e 2012. Então, isso não difere muito de outros momentos que não passam de deslizes. A política do estado é a mesma e é justamente essa a que o comandante nos revelou. Fórum - Deixo aberto também, Douglas, para que faça qualquer comentário ao apontamento sobre o assunto que eu não tenha mencionado nas perguntas, por favor. Belchior - O estado brasileiro, a formação do estado e da nação brasileira é fruto de um processo de 400 anos de escravidão e de um período de falsa democracia, de um período de construção republicana e de estado de direito torto e enviesado, que nem em seus melhores momentos garantiu uma igualdade e uma condição de cidadania e de vida digna do povo descendente da escravidão e pra todos aqueles que os cercam, que os parece. Então, a gente vive a continuidade dessa história, somos frutos diretos dos resquícios da escravidão no Brasil. O processo, a mentalidade escravocrata, a forma como ocupa os lugares dentro da sociedade, os de baixo, embaixo, os de cima, continuam em cima, essa lógica e essa forma de organização e como o instamento continua organizado é fruto direto da escravidão. E a polícia se presta a esse serviço, sempre foi assim, a segurança pública sempre prestou esse serviço e a nossa tarefa é continuar denunciando. E, por isso, a gente exige a saída imediata desse comandante da Rota. A gente não pode ter no comando uma voz que orienta seus comandados a cometer crimes contra a população negra do estado de São Paulo.