Fiel companheiro até o fim, por Bruno Monteiro

Bruno Monteiro, secretário particular da ex-presidente Dilma, conta em emocionante artigo, os últimos dias no Planalto que forma, por coincidência, os últimos dias de vida do cachorro Nego. Segundo ele, os dois “concluíram uma bonita história de companheirismo e parceria que era só deles. E que merece ser respeitada”

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Bruno Monteiro, Assessor Direto da ex-presidente Dilma, conta em emocionante artigo, os últimos dias no Planalto que foram, por coincidência, os últimos dias de vida do cachorro Nego. Segundo ele, os dois “concluíram uma bonita história de companheirismo e parceria que era só deles. E que merece ser respeitada” Bruno Monteiro* Brasília viveu um tempo bastante diferente em 2016. Na medida que o calendário avançava, o clima político ficava mais tenso. O terceiro andar do Palácio do Planalto era sempre agitado. Além de medir diariamente o termômetro de apoios políticos, muitas coisas aconteciam. Uma nova etapa do programa Minha Casa, Minha Vida era estruturada. O avanço do mosquito Aedes Aegypti e das doenças que ele transmite motivaram uma estratégia de ação. Os preparativos finais para as Olimpíadas eram monitorados minuciosamente. Além disso, os índices econômicos e o acompanhamento do nível de chuvas e dos reservatórios eram rotinas diárias. O percurso entre os dois palácios – do Planalto ao Alvorada – era percorrido em pouco mais de três minutos pelo comboio presidencial. E nesse trajeto eu sempre tinha uma prévia do horário que iria para casa. Nos dias tranquilos, a principal passageira do carro (e também principal ocupante dos palácios) abria o vidro para sentir a brisa do Cerrado. Pedia que eu telefonasse para a filha ou então aproveitava para combinar com os seguranças o horário e o itinerário da pedalada da manhã seguinte. Indicativo de fim de expediente e, portanto, que eu seria liberado logo. Havia, porém, os dias em que o telefonema que eu fazia era para algum ministro ou aliado político. O vidro permanecia fechado e ninguém mais falava nada no interior do veículo. Esse era um indicativo de que haveria mais alguma reunião. Como a Lei de Murphy é implacável, nesses dias, não raramente, o sinal do celular falhava, telefones estavam na caixa postal e até solavancos no carro aconteciam em decorrência de algum buraco na via. Eram os dias que os três minutos pareciam 30. E nos quais eu obviamente trabalharia até bem tarde. Independente de como tinha sido o dia, o trajeto ou como seria a noite, quando o veículo presidencial entrava na garagem do Palácio da Alvorada, uma cena se repetia. Além dos seguranças e funcionários que ali estavam, havia sempre dois seres esperando ansiosos. Eles desconheciam cargos ou hierarquias. Estavam ali esperando sua dona chegar. Fafá não esperava nem o carro parar e já corria para o elevador. Pegava uma carona até a ala residencial, onde sempre contava com a boa vontade de alguém e filava comida do jantar. Depois se esbaldava em um sofá como se fosse a verdadeira rainha daquele palácio. Para uma cachorra que foi encontrada abandonada e ferida na rua, digamos que Fafá venceu na vida. E a todo momento tinha sua atenção chamada, para tentar impedir abusos e para lembrar que ela não era gente. Nego – ou Negão, como a sua dona o chamava – a recebia de forma diferente. Ele ficava em uma cama no chão e tentava levantar. Quando estava bem, ficava em pé para receber o carinho que ía da cabeça até quase o rabo. Nos dias que ela ouvia relatos de que ele tinha caminhado pelos jardins e, eventualmente, até dado uma corrida, a dona ficava orgulhosa e elogiava a força do companheiro. Falava isso enquanto dava uns tapas carinhosos no dorso canino. Só que esses dias eram cada vez mais raros. Ele sentia o peso dos seus 14 intensos anos. Geralmente Nego permanecia deitado e só conseguia levantar a cabeça. A dona se agachava ou até sentava no chão para interagir com ele. Os dois trocavam um poderoso olhar. Ela, com seu característico olhar profundo, forte. Ele, já com olhar opaco, parecendo distante. Mas eles não deixavam de se comunicarem por meio desses olhares. Nesses dias, ela entrava no elevador contrariada. Falava que era horrível vê-lo assim. Lembrava dos bons momentos e trocávamos impressões, uma vez que também sou cachorreiro e tive um labrador. Quando falava a palavra sacrifício, o olhar mudava e engolia algo amargo. Éramos só nós dois no elevador antigo daquele palácio projetado por Oscar Niemeyer, que subia os dois andares bem lentamente. Fafá sempre ali também. Nos dias bons, se esparramava no carpete do elevador com as quatro patas para cima esperando o pé direito da dona, sempre calçando um sapato baixo, deslizar sobre sua barriga. Nos dias em que o clima estava mais pesado, Fafá ficava de costas para nós, de frente para a porta, aguardando ansiosamente que esta se abrisse. Quando maio chegou, o Congresso decidiu afastar a dona de Nego e Fafá do seu trabalho no Palácio do Planalto. A partir de agora, ela estaria mais em “casa”. Seria um momento de estar mais perto deles. Mas a saúde de Nego começou a regredir. Sua dona saía pouco de casa, mas não deixava de interagir com o velho companheiro todos os dias. Ela ía ver como ele estava e saber do seu estado de saúde. E expressava preocupação. Era só o que a abatia. Nem a situação política cada vez mais difícil, as traições crescentes, as ingratidões, as notícias mentirosas com destaque na imprensa a atingiam aparentemente. Ela mantinha uma estabilidade comportamental que impressionava a todos. Mas quando notava as dificuldades do seu cachorro em seguir vivendo, sentia dor junto com ele. Dizem os supersticiosos que agosto é o mês do desgosto. Aquele agosto de 2016 foi assim para nós. O golpe foi se consolidando e se confirmou de forma definitiva no último dia do mês. A incerteza virou certeza e a situação se resolveu. Foi triste e ruim para o país, sem sombra de dúvidas. Mas para quem estava ali vivendo aquela agonia de meses, setembro chegou com certo alívio. Não haviam mais ilusões. E Nego sentiu isso. Foi naquela primeira semana do mês da primavera que ele começou a piorar de forma irreversível. Quando o veterinário comunicou a dona que mantê-lo vivo só prolongaria a dor e o sofrimento, eles acordaram que a única saída era o sacrifício. Decisão difícil. Mais uma na vida dela. O veterinário preparou tudo e me perguntou se a dona gostaria de se despedir. Esperei ela terminar de almoçar junto com alguns dos poucos e fieis aliados que seguiram ao seu lado até o fim e fiz a pergunta. Num impulso, ela pulou da cadeira e disse que sim. Deu três passos, parou diante de uma janela do palácio e passou a observar o horizonte da Capital federal. Com esse olhar distante e um tom diferenciado de voz, disse que melhor não. Preferia não ter essa despedida. Telefonei para o canil repassando o recado e liberando o procedimento. A dona atravessou o amplo palácio conversando com seus companheiros sobre as peripécias de Nego, que naquele exato momento estava recebendo a derradeira injeção. Era um dos últimos dias dela lá. Dele foi o último. Ele resistiu enquanto ela precisava dele. No momento que aquele ciclo se fechava, ele partiu. Esteve com ela nos anos mais intensos, nos bons e nos maus momentos. Aguentou até o fim porque sentia que ela precisava dele. E quando tudo se resolveu, partiu sereno, deixando sua sempre forte dona saudosa. Assim concluíram uma bonita história de companheirismo e parceria que era só deles. E que merece ser respeitada. * Jornalista, foi Assessor Direto da Presidenta Dilma Rousseff, a dona do Nego e da Fafá. Foto: Reprodução YouTube Leia aqui matéria sobre perseguição sofrida por Dilma por conta da morte do cachorro Bego