Guilherme Estrella: “Conhecemos menos das riquezas brasileiras do que a NSA”

Para o ex-diretor de Exploração e Produção da Petrobras, conhecido como “pai do pré-sal”, uma pré-condição para retomar o desenvolvimento autônomo é anular todos os atos feitos pelo governo Temer desde 2016 em relação à empresa

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Guilherme Estrella ficou conhecido como o “pai do pré-sal”. Geólogo, ele já estava aposentado da Petrobras, onde trabalhou de 1965 até a década de 1990, quando recebeu convite e aceitou retornar à empresa, sendo o diretor de Exploração e Produção (E&P) entre 2003 e 2012. Durante sua gestão foram descobertas, a partir de 2006, as enormes jazidas de petróleo da seção do pré-sal nas bacias sedimentares do Espírito Santo e Santos. Estrella já havia ocupado diversos cargos gerenciais na empresa. Foi gerente de Exploração da Petrobras no Iraque, entre 1976-1978, quando foi descoberto um campo gigante de petróleo, o Campo de Majnoon. Hoje, Estrella lamenta os rumos que a empresa estatal brasileira vem ganhando com o governo Temer. “Esse governo não tem legitimidade, foi imposto num golpe híbrido, com os três poderes da República, na sua maioria, comprometidos com a visão destruidora do Estado nacional”, disse ele, em entrevista ao editor da Fórum, Renato Rovai, no programa Fórum Onze e Meia. Leia a seguir. Renato Rovai – Quando naquele domingo vieram à tona as denúncias do Snowden pelo Fantástico que tinham saído no The Guardian, tomei um choque, e falei 'bom eu imagino que a partir de agora o Palácio do Planalto vai tomar todos os cuidados em relação ao pré-sal’. O que você achou que poderia acontecer com a Petrobras e com o pré-sal? Guilherme Estrella – Na verdade não nos causou surpresa o fato de ter sido trazido a público uma espionagem da NSA. A importância do pré-sal na geopolítica mundial e a preocupação dos Estados Unidos com essa descoberta já tinham sido explicitadas. Primeiro, pela reativação da quarta frota, três meses depois de nós termos anunciado o pré-sal. Antes disso, a primeira manifestação deles nós tivemos quando o computador de bordo do poço descobridor do Campo de Lula, antigamente se chamava Tupi, foi roubado no cais do Porto do Rio de Janeiro. E esse computador nós não tivemos a malícia da descoberta que havíamos feito em termos geopolíticos e a gente manteve os procedimentos operacionais do poço de Lula. O computador foi roubado com todos os dados. Os caras tiveram acesso às informações, inclusive antes de nós tornarmos públicas a descoberta do pré-sal. Nós fomos a Brasília, eu comuniquei imediatamente o Gabrielli e já na hora a gente disse ‘isso tem a CIA no meio’. A NSA não era conhecida, veio com o Snowden. A gente não tinha muita ideia da organização estratégica do governo norte-americano. Essa atenção dos Estados Unidos sobre o pré-sal já tinha sido percebida com muita evidência bem antes da notícia do Snowden, o que veio apenas se confirmar. Agora veio com muito mais agressividade quando a gente viu que não era apenas uma espionagem industrial, era cibernética, e tendo como objetivo o próprio Brasil, o próprio governo brasileiro. Renato Rovai – Me chamou muito a atenção que no pacote do Brasil, a Petrobras era “a joia da coroa”. Guilherme Estrella – O Brasil, com toda a extensão territorial e o patrimônio natural, tinha um calcanhar de Aquiles que era a energia. Na história toda passamos sem energia, a energia mesmo em oferta abundante para basear um projeto de Brasil, de desenvolvimento nacional, veio com o pré-sal. O pré-sal veio cobrir essa lacuna na nossa base, para efetivamente criar um projeto de país industrializado e moderno. A ascensão do governo Lula, na minha opinião, foi muito influenciada pelo pré-sal e do lançamento de uma projeção geopolítica mundial com essa condição de ter para o século 21 inteiro a sua base energética assegurada. Eu acho que isso foi a gota d'água para despertar definitivamente o interesse da nação hegemônica mundial a respeito do Brasil. Éramos um país dependente de energia, conseguimos a autossuficiência em 2006, mas logo perdemos, então o pré-sal veio dar base absolutamente estratégica de energia para termos uma nação efetivamente soberana e sermos donos do nosso futuro. Renato Rovai – É a mesma coisa que aconteceu no Iraque, num dos poços mais importantes da história do país, que foi descoberto pela Petrobras. Guilherme Estrella – O que aconteceu é que com a queda da monarquia iraquiana, pouco tempo depois, o grupo militar que tinha afastado a monarquia sofreu um outro golpe de Estado e assumiu o partido socialista árabe. Esse pessoal era extremamente nacionalista, e a primeira coisa que eles fizeram foi estatizar a indústria do petróleo. Eles estatizaram, desapropriaram as duas empresas que eram subsidiárias. O governo inglês entrou na justiça na Corte de Haia, que decretou o embargo do petróleo iraquiano. O Brasil era um grande importador do petróleo iraquiano. O Geisel quebrou o embargo na Corte de Haia e continuou comprando o petróleo iraquiano. Com a nacionalização das duas empresas, os ingleses repatriaram toda a parte técnica, e todos os geólogos e engenheiros ingleses que trabalhavam na empresa no Iraque voltaram para a Inglaterra. A companhia iraquiana, que foi fundada com a nacionalização e a estatização do setor, ficou sem gente especializada, nem geólogos e nem engenheiros. O governo iraquiano abriu, na área de exploração, áreas para serem oferecidas às empresas estrangeiras que quisessem investir no Iraque. Concomitantemente, a OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) tinha uma política de considerar como clientes especiais dos países produtores de petróleo aqueles que investiam também na exploração nos países produtores, e coincide pelo governo brasileiro ter iniciado a derrubada da decisão de Haia. Nós fomos aquinhoados com duas grandes áreas exploratórias no Iraque. Fizemos um trabalho de geologia espetacular, com Celso Ponte e Airton Northfleet, dois geólogos históricos na Petrobras. Furamos o poço de Majnoon. Para se ter uma ideia, ele sozinho deve ter o pré-sal todo. Quando o governo iraquiano viu o tamanho da descoberta nos chamou. Nós éramos uma meia dúzia de engenheiros e geólogos na sucursal iraquiana. E disseram: “Olha não foi pra isso que a gente chamou vocês aqui. A gente chamou vocês para contribuírem com algumas descobertas e vocês descobriram um campo que vai produzir o que todo o Iraque hoje produz e nós não temos condições políticas de manter esse campo com uma empresa estrangeira, ainda que estatal, ainda que de um país amigo. Não se sabe o futuro, e vocês vão ter em suas mãos uma riqueza que vai produzir a mesma coisa que o país inteiro produz. Renato Rovai – Ou seja, estamos fazendo exatamente o contrário com o pré-sal... Guilherme Estrella – O contrário. Eles disseram: “Chamem a direção, a presidência da Braspetro, da Petrobras, vamos sentar à mesa e vamos fazer as contas. Vamos ver quanto tempo vocês gastaram aqui, vamos pagar tudo, fazer um acordo com contrato a ressarcir todos os custos e vamos abrir oportunidades no Iraque para empresas brasileiras. Entraram a Volkswagen, fabricamos o Passat Iraquiano, a Sadia passou a exportar frango, a Mendes Junior venceu uma licitação para uma construção de uma ferrovia grande. O Iraque abriu espaço pra cá, pra nós colocarmos os nossos produtos lá industrializados. E nos ressarciu tudo em fornecimento de petróleo. Foi essa a história. E nós entendemos perfeitamente a situação, uma empresa estrangeira com uma riqueza que era estratégica para o Iraque, tanto que mantiveram o campo de Majnoon sem campos de produção. Aquilo passou a ser uma reserva estratégica nacional iraquiana. Os EUA, quando invadem o Iraque em março de 2003, a primeira coisa que fizeram foi controlar Majnoon. Foi adquirido por um consórcio internacional e já está em produção. Renato Rovai – Estrella, queria chegar nisso e falar um pouco do que estão fazendo com a Petrobras. Você poderia comentar, porque o que estão fazendo com a empresa é algo trágico para o futuro do país? Guilherme Estrella – Na verdade, nós estamos na segunda etapa de um golpe ultraliberal, iniciado até com o Collor, depois o Itamar Franco também não modificou muito, só não deixou privatizar a Cemig, mas privatizou a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN). E Fernando Henrique, com esse modelo, com esse projeto de país, vai privatizando tudo. Promove a revisão constitucional de 1993, onde derruba o monopólio estatal do petróleo. Tira da Constituição uma coisa fundamental que é a diferença entre empresa atuante no território nacional, mas estrangeira na sua composição de capital acionária e com centro de decisão no exterior, e empresa brasileira, com maioria do capital nacional e centro de decisão no Brasil, que estava na Constituição de 1988 e permitia aos governos e empresas estatais estabelecerem uma diferença de tratamento. Isso existe em todo o mundo e foi cortado da Constituição, dentro de um projeto de país, que tinha na sua visão ideológica, um Brasil absolutamente subordinado e subalterno, alinhado ao neocapitalismo ligado ao capital financeiro internacional. Houve um acidente de percurso e ele não consegue privatizar a Petrobras. Renato Rovai – Onde a gente errou nesse processo de condução para que os golpistas tivessem tanta facilidade de rapidamente derrubar toda aquela legislação que foi construída, como o regime de partilha, e conseguir mudar o rumo da Petrobras e transformá-la numa empresa quase privada? Guilherme Estrella – Acho que não tivemos uma visão clara que o que está em jogo é o Brasil. Eu também tenho sentido que nós conhecemos menos das riquezas brasileiras do que a NSA. Para a conquista do Brasil, vale tudo. Não tem limite para eles,, um Brasil submisso e rastejante às suas ordens, orientações e determinações. Então, houve um golpe preparado de acordo com esse modelo chamado ditadura midiática judicial parlamentar. Isso é um movimento do governo norte-americano, é uma ditadura híbrida. É um movimento que atingiu toda a América Latina, dentro de uma onda neoliberal, que inclusive atinge a Europa também – agora na Espanha houve uma reversão – com a diferença de que uma coisa são os países latino-americanos também importantíssimos, outra coisa é o Brasil. O Brasil é o quinto maior país do mundo, tem a maior floresta tropical do mundo, com 10% do oxigênio da atmosfera, tem os dois maiores aquíferos, o Alter do Chão e o Guarani, somos o maior produtor de alimentos do mundo, temos as maiores reservas minerais. Este país tem todas as condições. Um gigante desse com um pé de barro que era a falta de energia. Temos um grande desenvolvimento em hidroeletricidade, mas não resolve a parada brasileira. Nós somos um país sobre pneus que precisa de combustível. Também não é confiável, pois em dois anos de seca, entramos num apagão. Surge a autossuficiência de petróleo com a Bacia de Campos, mas declina muito rapidamente; perdemos a autossuficiência, e descobrimos o pré-sal, que propicia e fornece ao Brasil a condição, não só de independência e soberania energética, mas de oferta abundante de energia durante o século 21. Adquirimos todas as condições de termos um projeto de país associado também ao mercado brasileiro. Nós somos a nona economia do mundo e ocupamos o 70º lugar no consumo de energia por habitante, o que é parâmetro de qualidade de vida e desenvolvimento. Temos um grande problema de desigualdade social e o mercado brasileiro com um potencial de ser o 15ª no consumo de energia per capita. A elevação da qualidade de vida e a diminuição da desigualdade do brasileiro seriam extraordinárias. Isso não era possível de ser considerado como aceitável pelo poder hegemônico mundial. Ao mesmo tempo, também com o pré-sal teve uma influência muito grande nisso, nós partimos para a associação com países que formam o bloco geopolítico mundial dos Brics. Os Brics são uma ameaça a um retorno a uma bipolaridade. Com a queda da União Soviética, o mundo transformou-se em monopolar, com predominância tecnológica científica e militar norte-americana, que faz o que quer no mundo inteiro. Está aí o Oriente Médio como exemplo.O Brasil toma uma iniciativa junto com outros países que formam os Brics – Rússia, Brasil e China – que são um peso pesado. Isso não era tolerável pela inteligência estratégica norte-americana. Disso decorreu o golpe, de uma forma arrasadora, que tira uma presidenta e temos um presidente que governa por medidas provisórias, modificando a Constituição. Eles sabiam que não podiam esperar as eleições de 2018 chegar, porque a chance de perder é completamente palpável. Tinham que fazer isso num pequeno período de tempo, e fizeram. Repetindo a frase de Parente: “Entreguei o que eu prometi”. Esquartejaram o sistema Petrobras, fizeram a mesma coisa que fizeram com o sistema elétrico. Sabiam que só tinham dois anos para fazer isso, antes das eleições. Eles não vão perder essa eleição, a NSA não deu o golpe para perder novamente o Brasil. Nós precisamos entender que estamos diante de um projeto de país. Renato Rovai – Os neoliberais costumam defender esse projeto do Pedro Parente da seguinte forma: “Mas é um absurdo ficar defendendo a Petrobras estatal, por causa da corrupção. Quando a empresa é privatizada, é melhor gerida e os recursos voltam em imposto”. Guilherme Estrella – Isso é uma falácia total. A crise bancária de 2008 nos Estado Unidos era corroída pela corrupção. Eles corromperam os departamentos de economia das principais universidades privadas norte-americanas para produzirem atestados de que suportavam aquela loucura dos derivativos. Renato Rovai – Inclusive tem um filme chamado “Inside Job”, que mostra isso. Mas a quantidade que eles pagam de impostos compensa?  Lá eles deixam tributos em uma grande escala, mas, por exemplo, a Vale do Rio Doce, depois de privatizada, deu mais lucro ao Brasil do que se ela fosse brasileira? Guilherme Estrella – Acho que não. Na minha opinião, deve-se chamar o economista depois de se construir, sob o ponto de vista ideológico, político e ético, um projeto de país. Daí se chama o economista e diz: “Dá um jeito nisso para ser sustentável”. Mas não o contrário. Temos um vício, na minha visão, de considerar primeiro o aspecto econômico. Para uma empresa estatal que tem que ter compromisso com o Brasil, com o maior acionista que representa o povo brasileiro, não pode optar em remunerar o acionista privado antes de mais nada. É melhor a gente produzir um petróleo a 10 dólares a mais um barril no Brasil ou importar mais barato? É muito melhor produzir no Brasil. Você dinamiza a economia, do ponto de vista social, temos uma presença fortíssima da Petrobras no Nordeste. Tem diversas contrapartidas da presença da empresa. Uma coisa é utilizar como premissa a abordagem econômica num negócio de uma empresa, uma padaria. Outra coisa é você empregar uma visão economicista em um sistema produtivo da importância estratégica, não só para a soberania nacional, mas para a melhoria das condições do povo brasileiro, como um sistema de petróleo, gás natural e energia. A visão econômica tem que ser no final das contas, não no início das contas. Na história da Petrobras, você gerencia um complexo sistema produtivo compensando perdas e ganhos nos elos dessa corrente, para objetivar um custo mais barato para o consumidor lá na ponta, porque esse consumidor é o povo brasileiro, seja ele o dono de um Chevette, o dono de um caminhão, ou o empresário que tem uma indústria que precisa da energia. Renato Rovai – O que tem que ser feito para que a Petrobras volte para o curso anterior e retorne o seu projeto que foi desenhado pelos governos Lula? Guilherme Estrella Não adianta, na minha visão, para o desenvolvimento nacional, gerenciar a Petrobras que está aí. Porque vai gerenciar, na verdade, uma empresa que já teve ponto de vista estratégico de longo prazo – o pré-sal trazia sustentabilidade da companhia a longo prazo durante todo o século 21. Mas quando modificam, e tiram a Petrobras como operadora única, quebram a política de conteúdo nacional, ferem o projeto de desenvolvimento brasileiro. Uma pré-condição para nós retomarmos um desenvolvimento autônomo, com o Brasil um país soberano, tem que desfazer tudo que eles fizeram. Os atos que esse governo tomou são falhos na origem. Esse governo não tem legitimidade, foi imposto num golpe híbrido, com os três poderes da República, na sua maioria, comprometidos com a visão destruidora do Estado nacional. Querem exterminar o Estado nacional. Não há outro jeito, o novo governo que entrar terá que desfazer isso tudo. Não é uma coisa fácil, mas não tem outro jeito. O pior que pode acontecer é nós ganhamos essa eleição e querermos administrar esse entulho apodrecido antibrasileiro que está montado. É preciso desfazer esse entulho e recuperar a Petrobras, anulando todos os atos referentes a esse governo. Esse é o ponto central de um novo governo, se nós elegermos esse novo governo. O modelo de considerar que o mercado vai resolver tudo deu nisso. Promovemos o incremento do uso da lenha. Outra coisa que é absolutamente inaceitável: voltou a aumentar o índice de mortalidade infantil. Este governo é infanticida. Isso é um crime contra nossas crianças, isso não pode ser aceito de maneira nenhuma. Isso tudo tem que ser desfeito. Temos que nos propor a enfrentar e romper. Os governantes têm que ir para a televisão e mobilizar a população a fazer a tomada de consciência por um fato tão impactante quanto foi essa greve dos caminhoneiros. Se elegermos alguém e quisermos gerenciar esse entulho podre e fedorento que está aí, a gente vai legitimar essa droga.