EXCLUSIVO: Itamaraty avançou em compra volumosa de cloroquina da Índia no dia da demissão de Mandetta

Documentos mostram que a Embaixada do Brasil na Índia foi utilizada pelo governo para realizar a compra - que terminou sem ser concretizada - entre abril e outubro de 2020

Foto: Marcello Casal Jr/ Agência Brasil
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Correspondências trocadas entre representantes diplomáticos do Brasil e da Índia mostram a atuação do governo de Jair Bolsonaro para comprar hidroxicloroquina e cloroquina do país asiático em 2020. Entre março e outubro, a Embaixada do Brasil em Nova Déli atuou como intermediária em uma negociação que acabou se encerrando sem desfecho, em razão da doação de insumos pelos Estados Unidos. Telegramas mostram que a demissão de Luiz Henrique Mandetta, em 16 de abril de 2020, pode ter impulsionado a negociata.

Os documentos diplomáticos obtidos pelo deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP) através da Lei de Acesso à Informação apontam que as primeiras correspondências do Brasil com o governo indiano sobre a cloroquina aconteceram no dia 27 de março de 2020.

Na data referida, o Ministério das Relações Exteriores, então comandado por Ernesto Araújo, enviou uma carta à Embaixada da Índia em Brasília pedindo que fosse liberada a exportação de sulfato de hidroxicloroquina do país asiático para o Brasil. A mensagem tratava sobre a Notificação 542015-2020, que vedou exportação e impediu a entrega de um lote comprado por uma empresa privada nacional, que teve o nome omitido no documento entregue ao deputado através da LAI.

A Notificação 542015-2020 foi publicada em 25 de março pelo governo indiano. A mensagem do MRE, portanto, foi enviada dois dias depois da medida, em caráter "urgentíssimo", segundo consta em documento. Confira no fim da matéria.

O MRE, na ocasião, atuou em nome próprio, para destravar negociações internacionais.

No entanto, em 16 de abril, data em que Mandetta foi demitido do Ministério da Saúde, o Itamaraty parece dar uma passo a mais e envia um comunicado à embaixada do Brasil na Índia para viabilizar uma compra de 5 milhões de tabletes de hidroxicloroquina. O documento, enviado às 10h24 de Brasília, diz que isso foi feito em nome do ministério. A Saúde foi comunicada no dia 13 de abril, mas a resposta não consta na documentação enviada pelo MRE ao deputado.

Chama a atenção o fato de Mandetta ter sido exonerado em respectiva data justamente por apresentar contrariedade à insistência de Jair Bolsonaro com a cloroquina. Apesar de confirmada à tarde, a saída do então titular da Saúde já era dada como certa previamente, o que pode explicar a decisão do Itamaraty.

Comunicação telegráfica feita pelo MRE com o embaixador André Corrêa Aranha do Lago em 16 de abril diz o seguinte: "Muito agradeceria a Vossa Excelência informar as autoridades indianas de que o Ministério da Saúde pretende adquirir o lote oferecido pelo governo indiano, de 5 milhões de tabletes de hidroxicloroquina (HCQ). A Secretaria de Estado está em contato com o Ministério da Saúde, com vistas à finalização das providências necessárias para efetivar a negociação". Confira o documento no fim da matéria.

No dia seguinte, o embaixador informa que atendeu a orientação para viabilizar a compra ofertada. Nesse mesmo dia 17, o MRE reafirmou o interesse do Ministério da Saúde no negócio. O obstáculo era a restrição imposta pela Índia.

Diversos telegramas mostram que Aranha do Lago, cumprindo o papel de representante do Brasil na Índia, manteve o governo informado a cada nova medida tomada pelos indianos diante das proibições. Em 19 de junho de 2020, o diplomata avisa que a hidroxicloroquina não estava mais proibida de ser exportada no país asiático.

Àquela altura, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e diversos pesquisadores da área de saúde já haviam reiterado inúmeras vezes que a droga não possuía eficácia comprovada contra a Covid-19.

A compra acabou não se concretizando em razão da doação de hidroxicloroquina feita pelo governo de Donald Trump, dos Estados Unidos, ao Brasil. Em 2 de outubro de 2020, o gabinete do ministro Eduardo Pazuello enviou o seguinte ofício ao MRE: "Faço referência aos Ofícios nº 09026.000019/2020-94, 09026.000020/2020-19, 09026.000021/2020-63 e Nº 09026.000038/2020-11 da Divisão de Promoção da Indústria; e ao Ofício nº 09148.000216/2020-27 da Divisão de Acesso a Mercados, que tratam da oferta de 5 milhões de tabletes de hidroxicloroquina feita pela Índia ao Brasil. Após consulta à área técnica pertinente, cujo parecer encaminho em anexo para conhecimento, este Ministério entende não ser necessário proceder com a aquisição do medicamento".