Livro "Carta no Coturno" expõe o "fruto proibido" do militarismo e conjectura sobre possível golpe militar

Autores do livro Carta no Coturno, lançamento da Editora Baioneta, conversaram com a Fórum sobre a ascensão dos militares desde o golpe institucional movido contra a presidenta Dilma Rousseff, em 2016, que gerou "um momento de excepcionalidade política no Brasil"

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O papel dos militares na política voltou a ser assunto no Brasil desde o golpe institucional movido contra a presidenta Dilma Rousseff, em 2016. Esse ressurgimento de um setor que vinha com pouca expressão desde o fim da ditadura se deu por meio de uma ruptura apoiada pelo Judiciário que deu margem para um espiral do caos, onde não se define mais o que é exceção e o que não é, a excepcionalidade passou a ser regularidade. É o que contam Pedro Marin e André Ortega, autores do livro "Carta no Coturno - A Volta do Partido Fardado", lançamento da editora Baioneta, que pretende fazer uma exposição sobre o fortalecimento da organização dos militares na política. Se você curte o jornalismo da Fórum clique aqui. Em breve, você terá novidades que vão te colocar numa rede em que ninguém solta a mão de ninguém A publicação é divida em três partes, uma conduzida por Pedro Marin, outra por André Ortega, e uma terceira com um compilado de artigos publicados pelos dois na Revista Opera desde maio de 2016. Marin é editor-chefe e fundador da Opera e autor do livro "Golpe é Guerra – Teses para enterrar 2016", já Ortega é fundador do site Realismo Político e colunista da revista. Em conversa com a Fórum, eles contam sobre como enxergam a publicação, as raízes do processo que reacendeu a participação dos militares na política, a fragilidade e a radicalidade de Jair Bolsonaro, a ameaça de uma nova Constituição sem constituinte, do vice-presidente Hamilton Mourão e até mesmo sobre olavismo, militares nacionalistas e a libertação de Lula. Um diagnóstico do golpe? Questionados se o livro pretendia ser um diagnóstico de um golpe militar no Brasil, os dois argumentaram que a intenção não era essa exatamente, mas a de expor diferentes cenários com as ascensão do Partido Fardado - a organização dos militares para tomar posições na política. Entre eles, há a possibilidade de um golpe militar, mas que ainda não é consolidado. "A gente entende que a ascensão do Partido Fardado pode acabar tomando múltiplas formas. Ele pode chegar, em um cenário limite, a um golpe militar, com mobilização de tropas que pressionam um governo instituído para cair, ou ele pode chegar por outras formas. Uma das que eu tenho pensado muito é tomadas pelos militares no Paraguai. Eles sempre tiveram grande influencia por lá, mas desde o impeachment de Fernando Lugo, a subida de Horácio Cartes e hoje com Mario Abdo, praticamente um confrade de Jair Bolsonaro, eles passaram a ter uma presença total na política do país", avalia Marin. "Tanto no Partido Colorado quanto no Partido Liberal, os militares tem uma presença muito forte, e ela não se dá tanto pelo programa do partido, mas pelo fato de serem companheiros de armas", pontua, lembrando que Abdo é militar e filho de um assessor do ex-ditador Alfredo Stroessner. "A gente tenta se colocar numa tradição de publicismo sobre o fortalecimento da existência desse poder militar agora e as possibilidades até onde ele pode levar", considera Ortega, que enxerga a publicação como um "livro vivo" e "vivente", referindo-se a Gramsci, mas também como um "fruto proibido". "O John Keegan, pensador militar, disse que Clausewitz deu um fruto proibido do pensamento estratégico para os povos. Nós queremos dar esse fruto proibido para a política brasileira. Para ele sair da cúpula militar e nós também pensarmos na política como guerra por um momento. É assim que podemos tirar o processo constituinte da mão da elite para ele ser tomado pelo povo", avaliou. A ruptura de 2016 O cenário do Partido Fardado de hoje se constrói, segundo os autores, em 2016, com a derrubada da presidenta Dilma Rousseff por um golpe institucional amparado pelo Judiciário. "Eu vejo a ruptura de 2016 como a abertura de uma porta pra um momento de excepcionalidade política no Brasil, mas não no sentido de Estado de Exceção. Mostra o caráter a excepcionalidade como substrato da política quando vem à tona nas próprias elites para ver quem vai assumir a direção do poder em um momento em que a organização deste poder está questionada", diz Ortega. Marin considera ainda que esta disputa e o "arranjo ilegal" que permitiu o impeachment sem crime de responsabilidade abriu um "espiral do caos", em que atores políticos do simbólico passam a disputar entre si sobre quem vai decidir o que é exceção e o que não é. E é nesse momento que emergem os militares com o "poder real". "Em todos estes atores que estão batalhando, muito do poder deles remete ao simbólico ou a uma noção de autoridade. E é aqui que está o perigo de um retorno do Partido Fardado, eles efetivamente tem capacidade de obliterar esses atores e obrigá-los a parar de 'brigarem' e fazer um novo ordenamento", analisa. Bolsonaro: frágil e radical Tanto Marin quanto Ortega destacam a fragilidade de Jair Bolsonaro em meio ao cenário que se construiu desde de 2016 e apontam que a radicalização é uma estratégia. "Eu acho que Bolsonaro não tem capacidade de fazer uma reorganização, o governo vai em um sentido de esticar a corda e aumentar a desorganização. Pode ser que a partir daí surja a necessidade de vir alguém e fazer um ordenamento novo, sedimentado em uma força. O Mourão pode ser isso, principalmente por ele ser um representante deste Partido Fardado", avalia Marin. "O Bolsonaro pode conseguir um favor dos generais para segurarem ele no governo, mas, ironicamente, eu acho que pode acontecer o contrário, que vai chegar em um cenário limite", conjectura Marin, apostando que pode surgir um processo de impeachment contra Jair Bolsonaro. Ortega acredita que a radicalização é uma forma de Bolsonaro e o grupo mais ideológico ligado a ele - o olavismo - se manterem vivos. A aproximação com os Estados Unidos, inclusive, é parte de uma estratégia para garantir um fortalecimento desse setor. "Você ter o apoio dos EUA de antemão você evita golpes e conspiração. Pela fragilidade, eles precisam disso", avalia Ortega. Apesar de destacar essa fragilidade, ele evita contrapor totalmente o olavismo com o militarismo. "Na própria formação do pensamento militar do Brasil hoje você tem um papel muito acentuado de uma ideologia que é de direita e uma ideologia de extrema-direita. Muito do que o Olavo de Carvalho hoje fala - já que fazem muito essa contraposição entre o lado olavete e um setor militar - já foi dito dentro de Academias Militares antes dele começar a falar. Você tem, por exemplo, a figura do general Coutinho, que escreveu um livro sobre do gramscianismo no Brasil, sobre como o Brasil teria quase se tornado uma república comunista por conta da Constituinte de 1988", destaca Ortega. Dias Toffoli, Constituição de 1988 e General Hamilton Mourão Questionados sobre uma reportagem de capa da revista Época, que conta que há militares insatisfeitos com Bolsonaro, os autores destacam o acordo feito por Dias Toffoli em que militares cogitaram concretamente a movimentação de tropas para a derrubada do governo Bolsonaro, em maio. Marin pontua que isso demonstra o crescimento do Partido Fardado com o passar dos anos e a falta de questionamento feito pela mídia tradicional. "Há quatro anos atrás não era normal que militares se manifestassem assim, peitando instituições ou peitando partidos. De repente isso se tornou normal sem que ninguém da mídia tradicional tenha ligado um alerta", disse. Ortega também comenta sobre essa reunião, destacando uma certa convergência de Toffoli com os militares. "A coisa é tão absurda que a gente vê o Toffoli fazendo cinco falas críticas à Constituição dizendo que ela deve ser diluída. E essas críticas foram feitas pelo próprio Mourão. O momento de excepcionalidade gera um momento constituinte e pessoas, como o Mourão já falaram de uma nova Constituição criada por um grupo de notáveis e, no máximo, colocar essa Constituição à referendo", pontua Ortega. A postura de Mourão é um ponto importante. Marin avalia que, em um primeiro momento, o antes explosivo Mourão se colocou como uma figura moderadora, tentando se descolar de Bolsonaro, e fazia isso pelo confrontamento. O silêncio adotado recentemente pelo vice-presidente não significa um consentimento. Ortega diz que esse "silêncio", comemorado pelo presidente da República, "não é uma retirada das ambições pública". "Pode ter muitos significados. Não pode ser interpretada como uma retirada das ambições públicas. Naquele momento que ele estava falando bastante, até fevereiro, existiam pessoas que diziam que ele articulada uma ascensão com o Congresso. Ficar em silêncio não significa uma derrota ou uma desistência, mas também não dá para dizer que ele não está alinhado com o Bolsonaro neste momento", disse ele, remetendo às articulações comandadas por Toffoli, em maio. Militares nacionalistas e Lula Em entrevista para a TVE da Bahia, o ex-presidente Lula fez quase um chamado aos militares nacionalistas questionando aonde eles estão. Para Marin essa declaração é interessante e "Lula tenta sugerir alguma coisa", mas avalia que esses nacionalistas ou estão isolados, ou não existem. "Dentro do exército houve sempre uma briga entre militares nacionalistas e militares mais atlantistas, mais próximos dos EUA. Realmente é de se perguntar onde estão os militares nacionalistas. Acredito que eles ainda existem, mas estão isolados. Não sei se há um grupo minimamente organizado", declara, citando Nelson Werneck Sodré. "A gente observa que ou eles estão isolados ou eles não existem, a gente prefere acreditar que eles estão isolados", completa. Sobre a soltura do ex-presidente, Ortega avalia que ela é pouco provável e, se acontecer, será com um consentimento dos militares. "Se o Lula for solto possivelmente há um consentimento. Ele também deve sair com uma postura de responsabilidade pública e contenção. O problema é que existe um elefante na sala com a Vaza Jato, isso está jogado ao público", afirma. "A soltura pode intensificar aquela lógica da excepcionalidade, a agitação radical", completa. O livro "Carta no Coturno" está disponível no site da Editora Baioneta.