EXCLUSIVO: Manuel Loff faz paralelo entre Bolsonaro, PMs e Espanha pós-Franco

Principal historiador português da atualidade concedeu longa entrevista à Fórum e falou sobre a situação vivida pelo Brasil, seus reflexos nas sociedades nacional e internacional, e sobre possíveis cenários com Bolsonaro. Confira a primeira parte

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Manuel Loff é o mais proeminente historiador português da atualidade. Professor titular da Universidade do Porto e pesquisador associado da Universidade Nova de Lisboa, Loff é uma autoridade acadêmica prestigiada e com mais de 20 anos de estudos sobre autoritarismo e ditaduras fascistas do século XX. Doutorou-se pelo Instituto Universitário Europeu de Florença, na Itália, e atualmente vive entre Portugal e Espanha com suas pesquisas e atividades docentes.

A Fórum realizou uma longa entrevista exclusiva com o historiador e a conversa fluiu por dois eixos: o bolsonarismo como movimento autoritário e seus reflexos na sociedade brasileira e também sobre como a comunidade internacional, sobretudo europeia, reage e vê o governo ultrarradical do presidente brasileiro, que já tem influenciado movimentos políticos em Portugal e na Espanha.

A primeira parte da entrevista, que versa sobre o bolsonarismo “intramuros”, ou seja, seus impactos aqui dentro país, você confere a seguir:

Fórum – Professor Loff, o bolsonarismo é um movimento que pode ser considerado, de fato, fascista?

Manuel Loff – “Devo dizer que acaba de sair um livro, agora neste mês de agosto, sobre as novas extremas direitas do século XXI e eu sou dos poucos nesse livro a sustentar as teses de que as novas extremas direitas radicais, neste século XXI são, na sua matriz, neofascistas. O bolsonarismo cumpre todas as condições essenciais para, no contexto do século XXI, e não estamos mais em 1933 na Alemanha, em 1922 em Itália e nem estamos em 1937 no Brasil, mas na eleição de 2018 e na ascensão ao poder em 2019 de Jair Bolsonaro, é em minha opinião, é a versão que toma o fascismo agora.”

Fórum – Movimentos autoritários, como o bolsonarismo, e que flertam com o nazismo, por exemplo, assim como outros, têm evitado o rótulo de racistas. No entanto, esse aspecto (do racismo) continua presente em ideologias assim?

Manuel Loff – “Eu concordo com essa relação ambígua estabelecida por Bolsonaro com o racismo e isso tem muito a ver com a herança do luso-tropical. Nesse contexto, o bolsonarismo se aproxima muito mais do Chega (movimento radical de Portugal atual, nascido há poucos anos), assim como o contrário também, já a extrema direita portuguesa do Chega se aproxima muito mais do bolsonarismo, mais que propriamente o caso do Vox em Espanha (movimento radical da Espanha atual, nascido também há poucos anos). E nós falamos de dois países (Portugal e Brasil) em que a retórica ideológica, de ligação com o racismo, e que é uma retórica muito consistente, quer no caso brasileiro, quer no caso português, é muito presente, mas disfarçada. No caso de Portugal, relaciona-se com a natureza colonial, até 1974, da dominação colonial, e a partir daí essa ligação decorre de uma renovação da tradição luso-tropical, herdeira de Gilberto Freyre, do percurso dos portugueses e da relação com os povos colonizados. No caso brasileiro, nega-se uma das fontes mais evidentes de tensão, dentro de um dos maiores confrontos que existe na sociedade brasileira, e dá-se uma dimensão não só étnico-racial, mas uma dimensão de classe, evidentemente, de natureza social.”

Fórum – O racismo então está lá, mas de forma descaracterizada e não assumido?

Manuel Loff – “O que unifica esse discurso discriminatório, preconceituoso, centrado numa espécie de inimigo interno, em países como o Brasil e Portugal, e em alguma medida também em Espanha, é a negação de que se tem racismo, com aquela conversa de “ah, não... o racismo é uma coisa de norte-americanos, alemães, franceses, do hemisfério norte rico”, assim como a criminalização da pobreza e a descrição dos pobres como parasitas do Estado e do bem-estar social, parasitas da riqueza da classe média, com forte vocação criminosa. No Brasil, o discurso securitário é muito forte... Essa ideia de que se é preciso securitizar o espaço público, um discurso de que essas pessoas ameaçam a vida dos brasileiros, é o discurso que remete permanentemente ao pobre, às camadas populares com baixos rendimentos econômicos.”

Fórum – O bolsonarismo e o próprio Jair Bolsonaro podem ser classificados como uma inspiração aos movimentos radicais portugueses e espanhóis contemporâneos?

Manuel Loff – “No caso português é claramente uma inspiração, justamente por que há uma semelhança e um ajuste nos modelos de propaganda, no uso das redes sociais, e que são lições evidentemente aprendidas pela direita portuguesa com a extrema direita brasileira. Jair Bolsonaro, como todos sabemos, foi aplaudido por toda a extrema direita europeia no momento de sua eleição, mas a administração, o governo Bolsonaro em si, ao longo de 2019, com as questões da Amazônia, e depois, em 2020, com a catástrofe que foi a gestão do governo federal brasileiro em relação ao problema da Covid, da pandemia, tem invisibilizado Bolsonaro para extrema direita europeia. Isso tem feito com que eles evitem fazer referências, ou a se aproximar, de Jair Bolsonaro.”

Fórum – Bolsonaro teria êxito em conseguir instalar um governo autoritário no Brasil?

Manuel Loff – “Eu nunca vivi no Brasil, tampouco trabalhei em universidades brasileiras, embora produza muitos trabalhos com colegas brasileiros, mas foi a partir de 2018 que me aprofundei muito na questão da extrema direita do Brasil. Eu confesso a minha enorme surpresa, e ela realmente foi enorme, depois da eleição, com a inaptidão total e absoluta de Jair Bolsonaro em formar um governo autoritário, como ele sempre quis fazer e que ainda quer fazer. E inclusive uma inaptidão muito superior à de Donald Trump na condução da política norte-americana. Ainda que eu queira acrescentar que não deixo de acreditar de forma alguma na reeleição de Jair Bolsonaro. Como nunca dei por perdida a reeleição de Donald Trump, e nós sabemos que Trump não perdeu um único voto, ele ganhou milhões de votos! O que ouço muito, de colegas, ou de meus estudantes, e há que salientar que a segunda maior comunidade de brasileiros no mundo é em Portugal e que os luso-brasileiros são muitos, é a tese mais ou menos assumida de que se realmente não houver nada, nenhum empecilho, até a data das eleições presidenciais, Bolsonaro não tem a reeleição perdida. Sua derrota não seria tão simples, não seriam favas contadas.”

Fórum – Muito se fala sobre a semelhança entre o Brasil de Bolsonaro e a Espanha pré-Guerra Civil, que acabou tristemente desembocando numa carnificina fraticida. O cenário, para alguns, seria parecido. O que o senhor pensa sobre isso?

Manuel Loff – “Vou lhe dar uma resposta de historiador: é sempre arriscado fazer comparações de casos muito diferentes, não só do ponto de vista nacional, mas sobretudo em contextos históricos diferentes. Não é excesso de precaução, mas é aconselhável entre historiadores dizer que, são situações substancialmente diferentes. A Espanha de 1936, ao contrário do que já havia acontecido em toda a Europa, vivia um contexto pré-revolucionário que criou um ambiente de pânico extraordinariamente agressivo por parte das direitas tradicionais e das classes dominantes espanholas, sobretudo no campo andaluz, em Castela, em Aragão e, especialmente, nas grandes regiões industriais, onde a burguesia terratenente (latifundiários) e a burguesia industrial dizem que o Estado liberal sempre será incapaz de travar ou afastar a revolução, e impressionados com a vitória nas eleições daquele ano por uma coligação política formada por setores populares, com a participação da extrema esquerda radical, teremos nós que tomar armas para o fazer. Desta forma, eu não acho que o Brasil está vivendo um período pré-revolucionário. Existe um ambiente de polarização e de radicalização verbal, claro, não simplesmente verbal, já que a sociedade brasileira é muito violenta, mas há sim já uma violência muito presente no Brasil, e o caso de Marielle Franco mostra que ali não foi um caso de violência verbal, aliás, nada verbal. Mas enfim, há uma escalada de violência verbal num país com uma das maiores taxas de violência do mundo, com um dos maiores índices de pessoas presas, com mais homicídios por ano, que não é exatamente uma característica brasileira, mas sim das condições sociais em que vive a sociedade brasileira. Eu responderia a isso usando o exemplo dos EUA. Nos EUA também temos muita violência, muitas mortes por arma de fogo, e o que ocorre no Brasil pode passar da violência na dimensão geral para a dimensão da violência política armada. Vou comparar metaforicamente, mas que isso seja apenas uma metáfora: O Brasil não corre risco de uma guerra civil assim como aquele episódio da tentativa de invasão do Capitólio, nos EUA, de forma alguma resultaria numa guerra civil nos EUA.”

Fórum – Não há semelhanças com aquela Espanha então?

Manuel Loff – “Penso que o Brasil não vive um julho de 36 (na Espanha), mas acho que o Brasil pode viver uma situação parecida com a que viveu a Espanha da transição (ao fim do Franquismo, nos anos 70), momentos nos quais a extrema direita armada, em grande medida, como acontece no Brasil, constituídos por efetivos das polícias e das Forças Armadas, que constituem esquadrões da morte, usando estratégias típicas de esquadrões da morte, façam e imponham vinganças de natureza política, como de certa maneira ocorreu com Marielle Franco. Esse tipo de violência já ocorre no Brasil e penso que isso poderia a vir a agravar-se muito. Isso não é uma figura de retórica e deve-se levar muito a sério a possibilidade de que, por conta de uma polarização ainda mais forte em torno do próximo ciclo eleitoral, no caso de uma derrota de Bolsonaro em novembro e já lançando mão de uma série de argumentos que ponham em causa a legitimidade da eleição, como fez Trump, e pensemos, meramente como imaginação, que Lula ganhe... Nós teríamos um ambiente entre novembro e dezembro de 2022, uma situação, que facilmente poderia descambar para uma grave violência política... Mas façamos uma ressalva de que ainda hoje é muito cedo para se falar de uma previsão assim.”

Fórum – Não há uma tendência, então? Não podemos ventilar se Bolsonaro permanecerá ou não no poder?

Manuel Loff – “Isso tudo dependerá muito da capacidade do bolsonarismo de manter seu engajamento interno daqui até a eleição de 2022. Bolsonaro nunca será reeleito se não tiver apoio de uma substancial fatia das direitas tradicionais, como aconteceu no caso italiano e como já ocorreu com todos os fascismos. Não devemos esquecer que os fascismos e neofascismos nunca chegarão sozinhos ao poder. Podem chegar por via de um golpe de Estado, e mesmo assim, num cenário de ruptura institucional, tenderá sempre a configurar uma coalizão de poder na qual os setores mais radicais e duros das direitas fascistas são minoritários... Mas de qualquer forma, não só Bolsonaro, mas foi assim com Hitler e Mussolini, para se manter no poder ele terá que manter ativo e efetivo um apoio significativo das direitas ditas tradicionais, que no caso do Brasil são esses grupos sociais e econômicos dominantes. A hora que os grupos sociais dominantes, os setores econômicos dominantes do Brasil, perceberem ou julgarem que Bolsonaro é um empecilho do que um instrumento útil para seu controle do poder, aí sim ou Bolsonaro não se apresentará à reeleição em 2022 ou perderá essa eleição.”

Fórum – Um golpe nos moldes tradicionais parece viável ou possível?

Manuel Loff – “Não parece, olhando aqui de fora, nem é o que nos chega, que os comandos militares ou que os comandos policiais tenham dando margem a qualquer solução autoritária radical, suspendendo constituição, ou suspendendo eleições, para manter Bolsonaro no poder indefinidamente.”