Maria Lúcia Fattorelli: Reforma da Previdência de Bolsonaro é "interesse do insaciável mercado financeiro"

Em entrevista exclusiva à Fórum, Maria Lúcia afirma que a pressa do governo Jair Bolsonaro (PSL) - e em especial do velho "Chicago boy", Paulo Guedes - terá como consequência o desamparo da população, como ocorreu em vários países, em especial no Chile, onde tal modelo condenou os idosos à indigência e ao suicídio. "É um modelo de alto risco social, inaceitável"

Bolsonaro e Paulo Guedes, em reunião com agentes do sistema financeiro no Fórum Econômico Mundial (Arquivo/PR)
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Auditora fiscal aposentada da Receita Federal, Maria Lúcia Fattorelli coordena há 18 anos a organização não governamental Auditoria Cidadã da Dívida e fez da luta contra as políticas impostas pelo sistema financeiro sua principal bandeira no Brasil e em países como Grécia, Equador e Portugal, fortemente afetados pela última grande crise do capital, em 2008, que ainda causa reflexos e serve de pretexto para a concentração de poder e lucro pelos grande bancos. Em entrevista exclusiva à Fórum, Maria Lúcia afirma que a pressa do governo Jair Bolsonaro (PSL) - e em especial do velho "Chicago boy", Paulo Guedes - está relacionada ao "interesse do insaciável mercado financeiro". "O que está por trás dessa contrarreforma da Previdência é o interesse do insaciável mercado financeiro, que não se contenta em receber os juros mais elevados do planeta; em ter a sua sobra de caixa remunerada diariamente (por meio do uso ilegal das Operações Compromissadas), e acumular lucros cada vez mais elevados, superando cada vez mais os lucros obtidos pelo setor em qualquer outro local do mundo", afirma. Segundo a auditora aposentada, uma das maiores especialistas do mundo no assunto, o alegado déficit não se deve a um problema no modelo de Previdência Social solidária, mas sim à “crise”, que no caso brasileiro foi fabricada pela política monetária do Banco Central, que quebrou inúmeras empresas, provocou desemprego recorde e derrubou o PIB. "O que tem gerado dívida pública não tem nada a ver com Previdência, ou outros investimentos sociais, mas sim, com o custo da política monetária do Banco Central", diz. Maria Lúcia acredita que o regime de capitalização proposto por Guedes e Bolsonaro - e que tem provocado um aumento no número de suicídio de idosos em países onde foi adotado, como o Chile - favorece somente ao mercado financeiro e vai destruir o sistema solidário e sustentável da Previdência no Brasil. "É um modelo de alto risco social, inaceitável". [caption id="attachment_167961" align="alignleft" width="400"] Maria Lúcia Fattorelli, (Reprodução/ Facebook)[/caption] Leia a entrevista de Maria Lúcia Fattorelli à Fórum na íntegra. Fórum: Como a senhora vê a pressa em aprovar a Reforma da Previdência pelo atual governo, especialmente pelo ministro Paulo Guedes? Maria Lúcia Fattorelli: A pressa do governo em aprovar a PEC 6/2019 é uma exigência do mercado financeiro, para que não dê tempo de desmascarar amplamente que o único beneficiário da destruição da Previdência Social pública e solidária será somente o mesmo mercado financeiro. O mercado sabe que se houver esse tempo, não conseguirão aprovar essa verdadeira indecência que adia, reduz e até extingue direitos da classe trabalhadora . O alarmismo é para que não ocorra a devida análise dos dados. Se observarmos bem, constataremos facilmente que as contribuições sociais previstas na Constituição Federal (COFINS; CSLL; PIS; contribuição ao INSS pagas por trabalhadores e empregadores; sobre produção rural; importações; loterias etc.) foram mais que suficientes para cobrir toda a despesa da Seguridade Social (que engloba a Previdência, a Saúde e a Assistência Social) e ainda sobraram recursos que foram destinados para outros fins, em especial para o pagamento de juros da chamada  dívida pública. A partir de 2015 houve uma queda brutal da arrecadação das contribuições sociais, devido à “crise” que levou milhares de empresas de todos os setores à falência, provocou desemprego recorde e paralisação da economia brasileira. Nesse cenário de “crise”, o governo ainda concedeu diversas desonerações fiscais e liberou diversos setores de contribuir para a Seguridade Social, afetando ainda mais a arrecadação. O alegado déficit não se deve a um problema no modelo de Previdência Social solidária, mas sim à “crise”, que no caso brasileiro foi fabricada pela política monetária do Banco Central, que quebrou inúmeras empresas, provocou desemprego recorde e derrubou o PIB. Empresas quebradas, desempregados e informais não contribuem para a Previdência. Esse é o problema, e não a longevidade das pessoas ou a solidariedade do modelo. Ademais, ainda que as contribuições sociais passassem a não ser suficientes para assegurar os direitos sociais, a própria Constituição já previu (Art. 195) que recursos do orçamento fiscal de todos os entes federados (União, Estados, DF e Municípios) também são responsáveis pela manutenção da Seguridade Social, juntamente com as contribuições sociais. Tudo isso está sendo destruído por essa PEC 6/2019, que cria um regime de capitalização que não oferece garantia alguma de qualquer pagamento de benefício futuro aos trabalhadores e trabalhadoras que terão que pagar uma contribuição definida durante décadas, porém, o benefício dependerá do comportamento do mercado, e pode ser zero ou negativo: em vez de receber benefício, o trabalhador pode ser chamado a aportar recursos ao fundo de capitalização. Quem vai ganhar com isso? Somente as instituições financeiras que exigem pressa em aprovar tal reforma, pois administrarão os fundos de capitalização e receberão as contribuições, sem responsabilidade alguma com o pagamento de benefício futuro. Fórum: A principal alegação dos reformistas é de que a dívida pública gerada pela Previdência se tornara insustentável. A Auditoria Cidadã diz que esse discurso não tem fundamento. Por qual motivo? Maria Lúcia Fattorelli: Essa alegação de insustentabilidade da Previdência é refutada pelos próprios dados. Desde a aprovação da Constituição até 2015 (inclusive) o superávit de recursos na Seguridade Social tem sido impressionante, conforme dados oficiais anualmente segregados pela ANFIP. A sobra de recursos foi, por exemplo, de R$72,7 bilhões em 2005; R$ 53,9 bilhões em 2010; R$ 76,1 bilhões em 2011; R$ 82,8 bilhões em 2012; R$ 76,4 bilhões em 2013; R$ 55,7 bilhões em 2014, e R$11,7 bilhões em 2015. E observe que essa sobra considerou apenas a arrecadação das contribuições sociais. Essa sobra de centenas de bilhões de reais ao longo de quase 20 anos foi desviada para os sigilosos gastos financeiros com o Sistema da Dívida Pública, que consomem cerca de metade do orçamento federal anual e que representa o verdadeiro rombo das contas públicas. A sobra de recursos da Seguridade Social poderia ser ainda maior, pois grandes empresas e bancos são devedores de contribuições sociais, mas faltam investimentos na administração tributária para viabilizar a sua cobrança. O desarranjo das contas públicas brasileiras vem de longa data e não tem nada a ver com a Previdência Social, mas sim aos gastos financeiros. Ao longo de duas décadas – de 1995 a 2014 – produzimos mais de R$ 1 trilhão de Superávit Primário, ou seja, o volume de “receitas primárias” (principalmente os tributos) superou em mais de R$ 1 trilhão a soma de todas as “despesas primárias” (que compreende os gastos sociais e investimentos em todas as rubricas orçamentárias, exceto os gastos financeiros com a dívida pública). Portanto, gastamos menos com as áreas sociais (inclusive a Previdência) do que arrecadamos em tributos! Dessa forma, durante esses 20 anos, o déficit das contas públicas não decorreu dos gastos primários, mas sim dos gastos financeiros com a chamada dívida pública. Apesar dessa economia forçada de mais de R$ 1 trilhão, que absorveu recursos que deveriam ter financiado o desenvolvimento socioeconômico, ainda assim, ao longo desses 20 anos, o estoque da dívida interna federal saltou de R$ 85 bilhões para R$ 4 trilhões em 2015. E continua crescendo exponencialmente, tendo alcançado R$ 5,523 Trilhões em Dezembro/2018. Portanto, o que tem gerado dívida pública não tem nada a ver com Previdência, ou outros investimentos sociais, mas sim, com o custo da política monetária do Banco Central, em especial: - a prática de taxas de juros absurdamente elevadas e injustificáveis, que provocam o crescimento da própria dívida pública, devido à emissão de títulos para pagar juros (o que é inconstitucional inclusive); - a abusiva remuneração da sobra de caixa dos bancos que, além de gerar mais de R$ 1 trilhão de dívida pública, custou R$ 526 bilhões – MAIS DE MEIO TRILHÃO DE REAIS - aos cofres públicos nos últimos 5 anos, e ainda gerou escassez de moeda na economia, o que por sua vez provocou elevação das taxas de juros de mercado e levou inúmeras empresas industriais, comerciais e de serviços à falência, derrubou o PIB e provocou desemprego recorde; -  o crescimento da dívida devido aos prejuízos operacionais do Banco Central e prejuízos com as escandalosas operações de swap cambial. Esses mecanismos é que fabricaram a “crise” atual e fizeram a dívida pública explodir. A proposta da PEC 6/2019 não ataca esses problemas, pelo contrário, retira dinheiro da população e aprofundará ainda mais a crise. Enquanto países ricos praticam taxas de juros reais negativas, aumentam a quantidade de moeda em circulação e fazem investimentos sociais para ativar a economia, a política monetária do Banco Central do Brasil caminhou no sentido inverso e foi a responsável pela “crise” atual, que está sendo considerada uma das maiores recessões da história, com a queda de 7% do PIB em 2015 e 2016. Estamos no caminho errado. Não dá para concordar com isso. Fórum: O favorecimento para uma estrutura previdenciária privada, como defende o novo governo, pode acarretar em quais consequências para o país? Maria Lúcia Fattorelli: O modelo de capitalização representa graves riscos para a classe trabalhadora e acaba de vez com o compromisso geracional que sustenta a Previdência Social solidária e sustentável de que trata a Constituição de 88. A Previdência Social solidária é integrada ao funcionamento da economia do país, já que a sua sustentabilidade está fundada na garantia de emprego digno para as pessoas economicamente ativas, cujas contribuições garantirão o pagamento daqueles que já cumpriram o seu período laboral e se aposentaram. No modelo de capitalização não existe solidariedade e nem poderia ser chamado de Previdência! Se você olhar no dicionário, verá que previdência é sinônimo de segurança. O modelo de capitalização não tem nada a ver com “segurança”. Pelo contrário, em tal modelo, cada pessoa terá sua continha individual dependente do funcionamento do mercado financeiro, que fará aplicações “de risco”! Podem dar errado e o mercado não terá responsabilidade alguma com o pagamento de benefício futuro. O governo também não! Isso é Previdência? Claro que não! Isso é colocar a classe trabalhadora para entregar parte de seu salário para o mercado financeiro que não terá compromisso algum com o pagamento de aposentadoria no futuro. Os servidores públicos estão correndo esse mesmo risco. Passaram a ser os “bodes expiatórios” e, mais uma vez, são chamados de “privilegiados”, por aceitar o contrato unilateral apresentado pelo próprio governo quando anuncia cada concurso público. O que está por trás dessa contrarreforma da Previdência é o interesse do insaciável mercado financeiro, que não se contenta em receber os juros mais elevados do planeta; em ter a sua sobra de caixa remunerada diariamente (por meio do uso ilegal das Operações Compromissadas), e acumular lucros cada vez mais elevados, superando cada vez mais os lucros obtidos pelo setor em qualquer outro local do mundo. O mercado financeiro quer porque quer avançar ainda mais e se apoderar da Previdência Social. Porém, só oferecem planos privados ou modelo de capitalização, invariavelmente organizados sob a modalidade de contribuição definida, de tal forma que as pessoas sabem quanto terão que pagar, mas não têm a menor ideia se irão receber ou não algum benefício futuro e qual seria esse benefício; ou se terão, ao contrário, que pagar a conta dos prejuízos das aplicações que deram errado, a exemplo dos recentes rombos nos fundos Postalis e Funcef. Assim, a consequência desse modelo de capitalização é o desamparo da população, como ocorreu em vários países, em especial no Chile, onde tal modelo condenou os idosos à indigência e ao suicídio. É um modelo de alto risco social, inaceitável. [caption id="attachment_167960" align="alignright" width="401"] Idosos em protesto contra a reforma da previdência no Chile (Arquivo)[/caption] Fórum: Quais, na sua opinião, deveriam ser os passos para se estruturar um sistema previdenciário que beneficie a maior parcela da população brasileira? Maria Lúcia Fattorelli: Temos especialistas e acadêmicos respeitáveis que vêm estudando a Previdência Social a vários anos. Precisamos reformar a Previdência para melhorá-la ainda mais, ampliar o alcance dos beneficiários, melhorar o valor do salário mínimo, dos benefícios e corrigir eventuais distorções e falhas. Temos recursos financeiros suficientes para isso. Em dezembro/2018, possuíamos, por exemplo: R$ 1,27 TRILHÃO no caixa do Tesouro Nacional R$ 1,13 TRILHÃO no caixa do Banco Central e US$ 375 bilhões (R$ 1,453 TRILHÃO) em Reservas Internacionais! Deveríamos estar em outro patamar de desenvolvimento socioeconômico, mas a subserviência do Brasil aos interesses financeiros, exigem que toda essa montanha de dinheiro sirva ao Sistema da Dívida! O primeiro passo para corrigir os rumos é interromper a política monetária suicida que tem sido praticada pelo Banco Central e parar de gerar mais de R$ 1,1 trilhão de “dívida pública” para remunerar sobra de caixa dos bancos, para cobrir os prejuízos com as ilegais operações de swap cambial, e outras benesses que fazem do privilegiado setor bancário que opera no Brasil, o mais lucrativo do planeta enquanto amarra a economia e joga a população no desemprego. Apesar da dificuldade de acesso aos dados, a Auditoria Cidadã da Dívida tem provado que a chamada dívida pública, que leva cerca de 40% do orçamento federal todo ano, tem sido gerada por esses mecanismos de política monetária e outros, como a inconstitucional contabilização dos elevadíssimos juros como se fosse amortização, a emissão exagerada de títulos para formar “colchão de liquidez” que já ultrapassa R$ 1,27 TRILHÃO do caixa único do Tesouro, por exemplo. É urgente ampliar a realização da auditoria dessa chamada dívida pública, que tem servido de justificativa para a aprovação da esdrúxula EC 95 (que congelou todos os gastos com a manutenção do Estado e os investimentos sociais por 20 anos), para as privatizações de inúmeras empresas estatais estratégicas e lucrativas, e agora é usada como justificativa para a destruição da Previdência Social. A auditoria é a ferramenta que investiga e prova as diversas ilegalidades e ilegitimidades da chamada “dívida pública”, desmonta o falso discurso e mostra a verdade, por isso é tão atacada pelos que defendem os interesses do mercado financeiro. Se enfrentarmos o Sistema da Dívida, ao invés de destruição da Previdência pela PEC 6/2019, faremos outra reforma que deverá de fato garantir aposentadoria digna ao nosso povo e melhoria nos benefícios previdenciários e assistenciais, que hoje se encontram, em sua maioria, no patamar de apenas um salário mínimo, enquanto os privilegiados bancos lucram dezenas de bilhões de reais que, ainda por cima, são distribuídos com isenção tributária. Nossa sucursal em Brasília já está em ação. A Fórum é o primeiro veículo a contratar jornalistas a partir de financiamento coletivo. E para continuar o trabalho precisamos do seu apoio. Saiba mais.