Mídia e a fabricação de celebridades políticas: notas sobre Luciano Huck, por Paulo Victor Melo

Se na aparência Huck é apresentado como novidade, traz na sua essência as mesmas marcas dos grupos que sempre utilizaram a política e a televisão como “business” para a conquista dos seus próprios interesses

Luciano Huck (Foto: Divulgação)
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Paulo Victor Melo* Ao chegar em casa, no final da tarde do último sábado (31/08), após algumas horas de trabalho durante aquele dia, me deparo com a televisão da sala ligada no programa Caldeirão do Huck, da TV Globo. Buscando interagir com as pessoas que estavam sob o mesmo teto, puxo uma cadeira da sala e, por alguns minutos, também me torno telespectador. Nesse curtíssimo tempo, vejo uma competição entre cachorros, que tem como premiação a conquista de produtos para prevenção contra pulgas e carrapatos, e um dos principais quadros do programa, Quem quer ser um milionário, jogo de perguntas e respostas, que, como faz questão de frisar o apresentador, ainda não teve um vencedor do prêmio máximo de R$ 1 milhão.

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Os dois quadros – que ocorrem em cenários diferentes, com o apresentador anunciando que mudará de um para o outro – são financiados por empresas, que têm suas marcas e produtos estampados ao vivo para todo o país. Nas publicidades ao longo da semana na Globo, uma dessas empresas, de produtos de limpeza, tem o próprio Luciano Huck como garoto-propaganda. Não permaneço muito tempo em frente à TV. A linguagem do programa, o formato, os cenários e o próprio Luciano Huck, além do cansaço do trabalho, me fazem desistir. Pareço, porém, não ser a regra. E se o apresentador Luciano Huck não me agrada, o seu crescimento junto à população, por outro lado, me desperta atenção. E (muita) preocupação. Considerando todos os programas da manhã e da tarde, Caldeirão do Huck é o líder de audiência da TV Globo – e de toda a televisão brasileira – aos sábados. À sua frente, no mesmo dia, apenas parte da programação noturna (três novelas, Jornal Nacional e Zorra). Segundo dados do Kantar Ibope Media, no sábado anterior à minha curta experiência com o programa (24/08), Luciano Huck foi acompanhado por 1.131.500 (um milhão, cento e trinta e um mil e quinhentos) domicílios apenas na Grande São Paulo. Multipliquemos esse número por, em média, duas ou três pessoas em cada casa e teremos, assim, a noção da sua presença nos lares brasileiros. Também a título de exemplo da força de Huck junto à população, no último sábado de março (30/03), o seu programa, que teve a participação de Sandy e Junior, foi responsável por 35% de toda a audiência da Globo naquele dia. No ar ininterruptamente há quase duas décadas (estreou em 8 de abril de 2000), o Caldeirão dura aproximadamente duas horas e meia por semana com quadros que, de diferentes formas, evidenciam Huck como alguém “sempre disponível a ajudar as pessoas”. Luciano consegue que carros antigos sejam consertados, ajuda na realização de “sonhos”, apoia projetos sociais. Tudo isso com muita luz, brilho, cores e música, elementos que – numa sociedade cada vez mais midiatizada e num sistema de comunicação com baixa diversidade de conteúdos e linguagens – conseguem atrair diferentes públicos, fazendo do apresentador uma celebridade cada vez mais presente no cotidiano das nossas famílias. Assim, tendo a “ajuda”, a “caridade” e o assistencialismo como instrumentos de ampliação da sua popularidade, via concessão pública de televisão, Huck se consolidou não como mera celebridade, mas como uma celebridade política, afinal é o terreno da política, no proposital esvaziamento de conteúdo ideológico, também cada vez mais midiatizado. Como celebridade política, não foram poucas as vezes que Huck utilizou o espaço privilegiado da televisão – tanto em seu programa quanto concedendo entrevista em outros – para fazer discursos de defesa da ética, de combate à corrupção e de “renovação” na política. Emblemática neste sentido foi a sua participação, em 7 de janeiro de 2018, no programa do Faustão: “Minha missão esse ano é tentar motivar as pessoas a que votem com muita consciência e que a gente traga os amigos que estão a fim para ocupar a política, senão não vai ter solução... Eu amo estar todo sábado na televisão, eu gosto muito de estar com as pessoas, de contar as histórias. Então, o que o destino e o que Deus esperam para mim, vou deixar rolar”, disse Huck, ao ser perguntando por seu colega de emissora sobre pretensões políticas. Visto à época como um dos potenciais candidatos à Presidência da República e tendo naquele momento um alto índice de aprovação popular, de acordo com pesquisa do Instituto Ipsos, Huck – expressando não ter dúvidas sobre o lugar estratégico que ocupa – finalizou a entrevista a Faustão dizendo: “Eu ainda acho que meu papel com esse microfone na mão aqui na TV Globo, motivando as pessoas, talvez seja até mais importante do que estar lá (na Presidência). Mas eu vou participar, eu vou botar a mão na massa, eu quero ajudar e eu acredito muito no Brasil. Contem comigo para tentar melhorar essa bagunça geral aqui”. Mas como é preciso desvelar o abismo que por vezes há entre aparência e essência, não custa lembrar que já na eleição presidencial de 2014, Huck atuava como um agente político importante. Após negar convites para disputar o Governo do Rio de Janeiro, Huck declarou apoio e fez campanha aberta para Aécio Neves, tendo, inclusive, acompanhado a apuração das eleições presidenciais no mesmo apartamento do então candidato do PSDB. Analisando a temática aqui em discussão, o professor João Kamradt ressalta que esse processo de consolidação das celebridades políticas é um fenômeno não apenas brasileiro e que foi ampliado com as redes sociais, ambiente em que as celebridades protagonizam campanhas e debates e conseguem despertar os olhares e ouvidos de grupos menos atentos às discussões políticas tradicionais. “Diante dos diferentes públicos que atraem, as celebridades são vistas pelos políticos como meio para atingir o eleitor que não se identifica com as decisões tomadas pelos políticos tradicionais, com as propostas ou a persona de certos políticos”, afirma o pesquisador, no artigo “Celebridades políticas e políticos celebridades: uma análise teórica do fenômeno”, publicado em março deste ano. Essa relação entre as celebridades políticas e grupos conservadores da política (e da economia) a que se refere Kamradt tem em Luciano Huck um caso exemplar. Matéria do jornal O Estado de S.Paulo, publicada no último domingo (01/09), revelou que um grupo de políticos e empresários já desenha um discurso e ações preparatórias a uma possível candidatura de Huck à Presidência em 2022. Dentre as lideranças dessa articulação estão o economista e ex-presidente do Banco Central, Armínio Fraga, o ex-governador do Espírito Santo, Paulo Hartung, e o presidente do Cidadania, Roberto Freire. Aqui, importa frisar que Luciano Huck não é apenas um apresentador de TV que se relaciona com a política, mas é também empresário e se tornou ao longo dos anos um participante direto, ativo, dirigente e patrocinador de grupos políticos, como o PPS e o RenovaBR. Como exemplo, vale mencionar, de acordo com dados do Tribunal Superior Eleitoral, a doação que Huck fez de R$ 235 mil para as campanhas de oito candidatos do PPS. Desse montante, Marcelo Calero, eleito deputado federal pelo Rio de Janeiro, recebeu R$ 50 mil, e Roberto Freire, um dos defensores de uma candidatura de Huck ao Palácio do Planalto, ficou com R$ 25 mil. A respeito do RenovaBR, idealizado por Eduardo Mufarej, empresário do mercado financeiro, e que tem Huck como principal personalidade pública, vale lembrar que oito dos nove deputados federais que participaram dos seus cursos – com bolsas entre R$ 5 e R$ 12 mil mensais – votaram a favor da Reforma da Previdência de Bolsonaro e Paulo Guedes, que, conforme diversos estudos apontam, prejudica as populações mais vulneráveis do país. E se no discurso o grupo se reivindica como uma “escola de formação política apartidária”, no site do seu curso preparatório oito dos 17 “líderes” apresentados são filiados ao Partido Novo, agremiação política que defendeu a Reforma e que tem dentre os seus integrantes o atual ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Flertando com figuras como Aécio Neves, Armínio Fraga, Roberto Freire e Eduardo Mufarej, Huck confirma-se como nada mais que um produto fabricado pelo caldeirão da elite política e econômica nacional, que ascende à condição de celebridade política via meios de comunicação, num caminho semelhante ao trilhado, por exemplo, por João Doria, que, após quase três décadas como entrevistador e apresentador de diversos programas de TV, tornou-se prefeito da capital paulista e, dois anos depois, governador de São Paulo. Num artigo intitulado “A TV e o rádio como trampolim político”, publicado em 2014, as jornalistas e pesquisadoras Iara Moura e Janaine Aires destacam que o uso de programas televisivos como espaços para a elevação de seus apresentadores ao patamar de potenciais representantes eletivos é uma característica fundamental da relação entre mídia e política no Brasil, com diversos exemplos ao longo da história. Luciano Huck é, portanto, mais um desses exemplos. Se na aparência é apresentado como novidade, traz na sua essência as mesmas marcas dos grupos que sempre utilizaram a política e a televisão como business para a conquista dos seus próprios interesses. Falar sobre isso com as pessoas que assistem e se encantam todas as tardes de sábado com Huck, é tarefa fundamental. *Paulo Victor Melo é jornalista, doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas, professor de Comunicação e integrante do Conselho Diretor do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.