Cale a boca e obedeça: o governo Temer e a política da violência

As pessoas vão pensando a realidade exatamente da maneira que os donos do poder quer que elas pensem. Hoje, em relação ao ano passado, já se aumentou o número de cariocas que defendem a ideia de que “bandido bom é bandido morto"

Foto: Agência Brasil
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A recorrente consideração segundo a qual o supremo poder, que é o poder político, deva também ter uma justificação ética (ou, o que é o mesmo, um fundamento jurídico), deu lugar à várias formulações de princípios de legitimidade, isto é, dos vários modos com os quais se procurou dar, a quem detém o poder, uma razão de comandar, é a quem suporta o poder, uma razão de obedecer.

Norberto Bobbio

É muito difícil discordar de Bronislaw Baczko de que é no imaginário social que está a legitimação do poder e de que nos períodos de crise intensifica-se a produção de imaginários sociais concorrentes e antagônicos. Esse imaginário, que facilmente se alastra pelos veículos de comunicação, busca “designar o inimigo no plano simbólico: mobilizar as energias e representar as solidariedades; cristalizar e ampliar os temores e esperanças difusos”.1

O golpe de 2016 resgatou dois imaginários sociais que fazem parte da memória política brasileira há muitos anos. O primeiro foi construir a ideia de que a esquerda é o grande inimigo da nação. Resumindo todo o grupo político ao PT, as elites, em um primeiro instante, usaram seus cães de guarda ligados à extrema direita para denegrir, no meio popular, toda a esquerda e, consequentemente, tudo que ela representa. O que foi um disparo no próprio pé já que a esquerda atual defende muitas pautas em comum com as elites, como algumas questões identitárias.

A fabricação desse imaginário social, que se resume ao ódio ao PT e a valorização de uma política contrária a que defendia o partido (uma política social), atinge níveis mirabolantes ao comparar o Partido dos Trabalhadores ao comunismo ou ao chavismo, usando-se, assim, de elementos deturpados historicamente para influenciar ainda mais a interpretação das pessoas sobre o processo político atual.

O outro imaginário social, atualmente agenciado nessa fase do golpe, é o da criminalidade. O combate à violência legitima o endurecimento das instituições e do processo golpista. Aproveita-se do imaginário social que aponta para o inimigo maior do consumidor, o criminoso urbano, impedindo outras formas de combate ao crime, mas eficientes, porém, menos espetaculares. No futuro se dirá: “o bom mesmo era a época do Temer quando o exército estava na rua pra combater a bandidagem”. Desta forma, o poder político vai manipulando os símbolos e monopolizando as nossas interpretações sobre o mundo social.

A retórica da ameaça

Mas todo esse imaginário social é articulado através de um procedimento argumentativo que se apoia na retórica da ameaça. Um governo que se diz novo precisa se apoderar de elementos tradicionais para que o impacto da mudança não seja sentido de forma radical. As diversas reformas que pretendem prejudicar e desmobilizar os trabalhadores vem recebendo críticas contumazes, o que fez o governo manipular o imaginário social da ameaça para desviar a indignação das pessoas, e para legitimar a sua “nova” política de gestão do país.

A tese da ameaça está sempre contra as investidas progressistas. Albert Hirschman destaca que no século XIX houve um tipo de argumento conservador contrário a ampliação do sufrágio em sociedades em que os direitos e liberdades civis foram conquistadas, que afirmava que o progresso poderia prejudicar a democracia. Assim como, “em seguida, quando foram introduzidas a seguridade social e a legislação de assistência social”, os oponentes a essa política diziam que Welfare State colocava “em perigo avanços anteriores no domínio dos direitos individuais”.2

Hoje não é tão diferente assim. As políticas sociais adotadas pelo governo anterior são vistas por muitos como uma forma de “sustentar vagabundo”, ameaçando, por sua vez, o ideal de conquista mediante o trabalho e o mérito. Outros reclamam de democracia demais, o que gera a “bagunça generalizada” que presenciamos hoje. E desta maneira, as pessoas vão se aproximando cada vez mais das políticas repressivas.

Não estou dizendo que a criminalidade não é de fato uma ameaça ao convívio harmônico dos indivíduos, seria leviano de minha parte. Não estou aqui também, como preferem alguns, “defendendo vagabundo”. O objetivo é observar como o governo agencia nossos medos para fins próprios, gerando obediência e progredindo sua política. Nos ajuda novamente Bazcko: “Exercer um poder simbólico não consiste meramente em acrescentar o ilusório a uma potência ‘real’, mas sim em duplicar e reforçar a dominação efetiva pela apropriação dos símbolos e garantir a obediência pela conjunção das relações de sentido e poderio”.3

Conclusão

As pessoas vão pensando a realidade exatamente da maneira que os donos do poder quer que elas pensem. Hoje, em relação ao ano passado, já se aumentou o número de cariocas que defendem a ideia de que “bandido bom é bandido morto”.4 E a população vai se distanciando cada vez mais de novas soluções, sendo obrigada a repetir o mesmo erro de sempre. Não percebe que é vítima de uma violência física, da criminalidade endêmica das ruas, porque é, antes de tudo, vítima de uma violência simbólica que a força a ver as coisas através de um único ponto de vista, arcaico, tradicional que nunca resolveu o problema de fato, que gera voto e mantém no poder os mesmos gestores de antes.

É somente se libertando da violência simbólica que resolveremos o problema da violência física. O Estado quer ter o monopólio das duas, mas no fim as administra para gerar obediência. É preciso ouvir outros discursos, desenvolver novas formas sociais de combate a violência, paralelas às propostas do Estado e dos grandes conglomerados empresariais, para não cairmos no limbo da insanidade do qual nos alertou Albert Einstein: “fazer a mesma coisa esperando fins diferentes”.

1 BAZCKO, Bronislaw. “A imaginação social”. LEACH, Edmund el all. Anthropos-homem. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda. 1985. p. 316.

2HIRSCHMAN, Albert. A retórica da intransigência: perversidade, futilidade e ameaça. Trad: Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Cia das Letras, 1992. p. 76.

3 BAZCKO, Bronislaw. Op. cit. pp. 298-9.

4https://oglobo.globo.com/rio/cariocas-rejeitam-ideia-de-que-bandido-bom-bandido-morto-21164766