O imbecil: um novo ethos político

É a primeira vez na história que se apresentar como um completo idiota, para o cargo máximo da democracia brasileira, pode alavancar uma carreira política. Ser impopular para os detentores da verdade acaba por ser um ímã para aqueles que sempre foram excluídos

Ilustração: Vitor Teixeira
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Mas, por mais aleatório e difícil que seja, o

conhecimento dos problemas essenciais do mundo deve ser tentado para evitar a

imbecilidade cognitiva.

Edgard Morin

Sempre quando ouço alguém defender soluções superficiais, como a liberação do porte de armas, a “escola sem partido”, ou à tortura para o preso etc., para problemas essenciais, lembro dessa frase de Edgar Morin. O semiolinguísta Patrick Charaudeau estudou uma série de ethos políticos que um político pode adotar para atrair um número expressivo para as suas fileiras. Ele pode construir uma imagem forte, tranquila, erudita etc., mas o professor francês não observou uma imagem que vem ganhando espaço nesse meio: a do imbecil. E não uso essa palavra aqui para designar alguém com deficiência mental como faziam os romanos ao excluir os loucos com seu discurso de normalidade. E muito menos pretendo impor um discurso do que é verdadeiro, mas apenas observar a apropriação da imagem política de uma cultura imbecilizada, ou como prefere Gilles Lipotvetsky e Jean Sorry1, “infantilizada”, para aumentar os seguidores. Informação à venda A “espetacularização” da cultura e da informação é um prato cheio para a manipulação e infantilização das opiniões, pois a cultura é feita para vender em quantidade e de forma atrativa, tendo assim de metamorfosear tudo que produz em espetáculo, impedindo, desta maneira, uma compreensão mais aprofundada do conteúdo. A transformação da informação em algo de consumo rápido, prende os jornais a polêmicas e informações sensacionalistas, e isso ocorre não só com os veículos da grande imprensa, mas, em muitos casos, também, com os da mídia independente. Desta maneira, certos políticos se aproveitam desse caráter efêmero e extravagante da mídia para lançar suas polêmicas. Aparecem em programas de televisão e em canais da internet que viabilizam esse tipo de informação. Os pais sentam ao lado dos seus filhos para assistir as bobagens ditas que, por sua vez, são interpretadas sem dificuldades. Não precisa um mínimo de esforço. As mentes se equiparam. Atrofiam-se. Isso também vomitou a estética do meme e suas frases que circulam de forma viral. O político precisa criar uma imagem de si polêmica através de bravatas dúbias para que seja motivo de debates nas redes sociais. Nada mais polêmico que ser imbecil, dizer coisas infundadas, asneiras, só para chocar. É a primeira vez na história que se apresentar como um completo idiota, para o cargo máximo da democracia brasileira, pode alavancar uma carreira política. Ser impopular para os detentores da verdade acaba por ser um ímã para aqueles que sempre foram excluídos. Mas tudo deve ser risível, cômico, ou, na linguagem dos jovens, “zoeira”. E a cada três ou quatro dias novas palhaçadas são apresentadas. Aproveitando-se de que as redes sociais deram espaço a essa cultura imbecilizada, o político que quer apenas ganhar votos usa os personagens que não estão habituados a pensar no que ouvem, mas apenas em se divertir com a viralização de seus posts, para reproduzir qualquer tipo de discurso que gere prazer, isto é, que seja espetacular. A criança, que tem um acesso cada vez maior ao mundo dos adultos, com maquiagens e computadores, acessando o que há de disponível, adultaliza-se nessa cultura infantilizada. Um paradoxo. Os adultos são cada vez mais infantis, por isso seus filhos são cada vez mais adultalizados. Os mundos se fundem. Crianças e adultos são apenas engrenagens num mercado que quer apenas formar indivíduos acríticos para dar a ele funcionalidade. Não podemos ficar admirados com a fama de Bolsonaro na internet, embora se somarmos os dois primeiros congressistas das esquerdas no ranking dos mais populares das redes sociais, os seguidores ultrapassem, sem dificuldades, os 5 milhões de asseclas do deputado conservador. Mas a questão que se deve levar em conta é o fato de os partidos de Bolsonaro (PSC, PEN, Patriotas) terem muito menos filiados que o PT, com os seus mais de 1,5 milhão. Ou seja, o deputado federal do Rio de Janeiro atrai pessoas que estão fora da política, fora até mesmo dos movimentos políticos que estão nas universidades e nas ruas (com exceção do MBL que aumenta consideravelmente suas fileiras virtuais por meio de uma contradição entre a palavra “livre” e suas investidas opressoras sobre a arte e a educação, forjando uma interpretação sobre liberdade que não é esquizofrênica - embora a palavra apareça de forma fantasmagórica na sigla do movimento - mas imbecil e imbecilizante, dissimulada e interesseira). A síndrome de Buzz Lightyear Um outro fenômeno atual assoma-se a isso tudo. Na antiguidade greco-romana, a criança era preparada para a vida pública. O público era mais importante que o privado. Inclusive, a palavra idiota vem de idiotes que designava “pessoa privada, simples cidadão”, isto é aquele que não participava da coisa pública.2 Para o sociólogo Richard Sennet, a privatização da vida ocorreu quando a criança foi percebida pela sociedade como um ser frágil.3 A existência da família era fundamental para a linhagem, um destino natural. Deste modo, o mundo público tornou-se cada vez mais hostil à inocência de uma criança, forçando os adultos a valorizarem o lar. A casa se tornou um local onde as pessoas não precisavam mais usar os sinais públicos de reconhecimento, bastavam ser elas mesmas. O público foi sendo vilipendiado gradativamente pelas pessoas. E não só desprezado, mas execrado, visto como um lugar onde reina a lábia interesseira, a corrupção, a rapina. Mas, a modernização da sociedade trouxe várias alterações, uma delas é que com a urbanização a natalidade diminuiu. Hoje chegamos a patamares surpreendentes onde a população está envelhecendo cada vez mais, enquanto que as pessoas têm cada vez menos vontade de ter filhos. O desejo de consumir, de modo geral, e a liberdade feminina acompanhada de uma necessidade de realizar os sonhos que a indústria do consumo apresenta, chocam-se com o desejo de constituir uma família, onde novas responsabilidades aparecem. A família deixou de ser um destino natural e passou a ser desejada, planejada.4 Deste modo, os jovens sem filhos, voltam-se novamente para a vida pública, no entanto, desta vez, carregando todo o ódio a ela desenvolvido ao longo dos séculos, entranhado em uma tradição. Consumidores de uma cultura que valoriza apenas o superficial, apropriam-se de instrumentos frágeis para compreender a complexidade da vida pública que, por sua vez, sustenta uma lógica de dominação de agentes que raramente aparecem. Acaba sendo relativamente fácil entrar nas mentes desses indivíduos que caminham em direção do que mais os excita, do que promete o prazer insaciável, quando não frustrado, que um sistema excludente promete, mas na maioria das vezes não consegue realizar. O uso das redes sociais por políticos, de programas sensacionalistas, que promovem uma comédia na lógica do riso instantâneo de coisas sérias, e de outros mecanismos, está atraindo um número cada vez maior de indivíduos que sofre da síndrome de Buzz Lightyear, personagem do filme Toy Story da Disney (já que estamos falando de infantilização): não percebem que são apenas bonecos.

1 LIPOVETSKY, Gilles e SERROY, Jean. A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada. São Paulo: Cia das Letras, 2011.

2 CATALÁN, Miguel. Anatomia del secreto: seudología III. Madrid: Verbum, 2016. p. 37.

3SENNET, Richard. O declínio do homem público. Trad: Lygia Araujo Watanabe. Rio de Janeiro: Record, 2014. p. 147.

4 BECK, Ulrich. Sociedade de risco. São Paulo: editora34, 2011. p.169.