Sobre a politização da morte e a morte da política

Em artigo, Silvio Luiz de Almeida analisa: “Que nós, os que ainda vivemos, sejamos capazes de ao chorar, ao mesmo tempo, honrar as vidas de Marielle e Anderson dignificando suas mortes com um alto e permanente brado político pela vida”

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[caption id="attachment_127608" align="alignnone" width="600"] Discordo daqueles que acham que não se deve “politizar” esta tragédia. O fato é político em si. Marielle viveu para a política e o fez no melhor sentido do termo - Foto: Reprodução/Facebook[/caption] Por Silvio Luiz de Almeida* Os brutais assassinatos de Marielle Franco e Anderson Gomes levaram milhares de pessoas às ruas, espalhando pelo país um clima de tristeza, indignação, medo e solidariedade. Mas, a profusão de sentimentos e a desorientação moral e política que se nos abatem neste momento gerou diversos questionamentos sobre como se deveria/poderia lidar com um ato tão brutal e qual o seu significado: seria correto transformar tamanha dor em um ato político? Seria moralmente aceitável vincular o trágico evento aos problemas nacionais? Não deveríamos dirigir a outras vidas perdidas pela violência o mesmo olhar que agora direcionamos a este episódio? Por que a morte de uma mulher negra e favelada e de um trabalhador pobre deveria guardar um sentido especial? Tais perguntas, ao fim e ao cabo, levam-nos ao velho dilema sobre a relação da vida e da morte com a política. Levando em conta especificamente as circunstâncias que tiraram a vida de Marielle e Anderson, há que se refletir sobre este dilema que opõe existência e política a partir de dois pontos: o significado coletivo de uma vida individual e a política como doadora de sentido para a vida e para a morte. Sobre o primeiro ponto, penso que as circunstâncias que ceifaram a vida de ambos não podem ser reduzidas a estatísticas, números e dados. Nada melhor do que a frieza da racionalidade estatística para naturalizar a vida precária e a morte violenta. Todas as vidas importam, isso deve ser afirmado. Mas o modo com que Marielle e Anderson perderam as suas têm, sim, um significado especial, que não pode ser desprezado com a frase “sempre foi assim”. Trata-se de um ataque covarde a uma mulher negra que foi eleita como representante de várias outras pessoas que com ela se pareciam. Uma vereadora que carregava o peso de 50.000 votos, uma das poucas parlamentares negras em um momento em que as mulheres negras ganham imensa visibilidade pela liderança que têm exercido junto aos movimentos sociais. Com seu mandato, Marielle tornou-se uma das poucas alternativas para que as demandas populares pudessem chegar ao campo institucional, lugar que exige o domínio da linguagem do direito e do trato com a burocracia. Marielle era nossa intérprete. Portanto, os tiros em Marielle foram para calar todos e todas que se identificavam com suas ideias, foram dirigidos a seus eleitores e eleitoras e foram disparados em quem se via de alguma forma representado por seu corpo negro. Foi um tiro em seu mandato, que ela mesma entendia como uma construção coletiva. Foi um claro recado de que certos setores da sociedade não querem mais dialogar com pretos, mulheres, periféricos, trabalhadores. Não foram apenas os corpos físicos de Marielle e Anderson atingidos pelas balas, mas o corpo político personificado no mandato da vereadora. Foram vidas que, para além de sua importância para os seus entes queridos, carregavam a esperança de milhares de outras vidas e, por isso, não nos cabe normalizar essa ignomínia, essa covardia. Que este evento, dado o seu significado político, possa ser tratado como uma ruptura. Em segundo lugar, devo dizer que discordo daqueles que acham que não se deve “politizar” esta tragédia. O fato é político em si. Marielle viveu para a política e o fez no melhor sentido do termo: a política é o lugar de negação de todo destino e toda determinação; a política é lugar em que criamos e transformamos as condições de nossa existência, em que nos é dado disputar os incontáveis sentidos da realidade. Todo dia, milhões de pessoas lutam para fazer de sua existência algo importante, e essa luta é política.  A política, e só ela, é que nos permite atribuir significado para a vida e para a morte. Marielle fazia política, ela tinha partido, ela nunca se apresentou como “gestora”; jamais negou a política ou promoveu o anti-intelectualismo (a prova é sua dissertação de mestrado, que era parte de sua luta contra o genocídio negro e o encarceramento). Sartre, o filósofo francês, dizia que a vida e a morte são absurdos, ou seja, não têm um sentido previamente estabelecido. O que dá sentido à vida, segundo Sartre, é o que dela fazemos, embora em circunstâncias que não escolhemos. Se o sentido da vida e da morte não se resume a aspectos biológicos, é nos autorizado pensar que a sociedade e, portanto, a política, que significa a existência. Por isso, não podemos tirar o significado político, nem da vida e tampouco da morte, de uma pessoa que viveu para tornar o mundo um lugar melhor. Estimular a morte da política é promover a política da morte, que é o desejo daqueles que querem empurrar questões como a desigualdade econômica, o racismo e o sexismo para o âmbito privado, local em que as reivindicações populares são limitadas. É contra este movimento que Marielle se opôs durante toda a sua vida. De outro lugar na teoria, mas em direção semelhante a Sartre, o sociólogo Marcel Mauss dizia como a lágrima, surgida no ato de chorar, não se resume a um fenômeno biológico, mas a fenômeno complexo que é a um só golpe, biológico, psicológico, sociólogo e, por isso, político. Que nós, os que ainda vivemos, sejamos capazes de ao chorar, ao mesmo tempo, honrar as vidas de Marielle e Anderson dignificando suas mortes com um alto e permanente brado político pela vida. Isto se fará nas nossas lutas contra o genocídio da população negra e indígena, contra a violação de direitos humanos, contra a retirada de direitos sociais, contra a intervenção federal e contra o cerceamento da democracia. Só assim faremos com que Marielle e Anderson possam viver para sempre. *Silvio Luiz de Almeida é presidente do Instituto Luiz Gama