Por que no Direito Brasileiro não pode haver prisão definitiva antes do "trânsito em julgado"?

Em artigo, advogado dá uma verdadeira aula de Constituição e explica como o STF ignorou as leis ao negar o habeas corpus ao ex-presidente Lula. Leia

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Por Caio Múcio Torino* Mister se faz analisar o conteúdo histórico em que foram outorgadas ou promulgadas as Constituições Federais nacionais, a fim de que se tenha a compreensão sociológica e política de cada época. Sem levar em consideração essa questão histórica, do momento em que se viveu em cada período – pós-monárquico, Estado Novo, ditatorial, estado democrático de direito - não há como se ter uma compreensão adequada de cada texto constitucional. Fazendo uma análise retrospectiva das Constituições da República Federativa do Brasil, quais sejam: primeira Constituição Republicana de 1891 e as demais de 1934, 1937, 1946 e 1967 em cotejo com a Constituição chamada “cidadã” de 1988, vamos encontrar naquelas o Capítulo atinente aos “Direitos e Garantias Individuais” dentre os últimos da Carta Magna. Consta esse, no arcabouço jurídico daquelas Constituições Federais, por exemplo, após Capítulos que tratam da Organização do Estado, Partidos Políticos, Ordem Econômica, etc. Isso, é claro, tem uma significação, qual seja, a importância que se dava a esses direitos. A primeira Constituição Federal, forjada após o exaurimento da Monarquia, traz na sua Seção II, do Título IV, a então denominada “Declaração de Direitos” onde no seu artigo 72, §§ 13, 14 e 16, constam as referências à matéria prisional, assim dispondo (cuja transcrição está em linguagem da época): “§ 13. Á excepção do flagrante delicto, a prisão não poderá executar-se senão depois de pronuncia do indiciado, salvo os casos determinados em lei, e mediante ordem escripta da autoridade competente. § 14. Ninguém poderá ser conservado em prisão sem culpa formada, salvo as excepções especificadas em lei, nem levado a prisão, ou nella detido, si prestar fiança idonea, nos casos em que a lei a admittir. “ “§ 16. Aos accusados se assegurara na lei a mais plena defesa, com todos os recursos e meios essenciaes a ella, desde a nota de culpa, entregue em 24 horas ao preso e assignada pela autoridade competente, com os nomes do accusador e das testemunhas”. Na Constituição Federal de 1934, na sua parte quase final, no Título III - “Da Declaração de Direitos”, consta no Capítulo II os chamados “Dos Direitos e das Garantias Individuais”. O artigo 113, tópicos 21 e 22, contém o seguinte teor: “21) Ninguém será preso senão em flagrante delito, ou por ordem escrita da autoridade competente, nos casos expressos em lei. A prisão ou detenção de qualquer pessoa será imediatamente comunicada ao Juiz competente, que a relaxará, se não for legal, e promoverá, sempre que de direito, a responsabilidade da autoridade coatora. 22) Ninguém ficará preso, se prestar fiança idônea, nos casos por lei estatuídos.” Citei essas Constitucionais Federais, na matéria em análise, como exemplos. Essa sistemática e conteúdo similar continuam nas Constituições Federais de 1937 (outorgada no mesmo dia que foi implantada a ditadura do Estado Novo, conhecida como Polaca); de 1946 e 1967 (esta sob à égide do regime militar autoritário), sendo que esta última foi amplamente revisada pela Ementa Constitucional nº 1 de 1969 -que alterou significativamente parte dos seus dispositivos, por ato dos Ministros da Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar - poder esse que lhes era conferido pelo Ato Institucional nº 16, no seu artigo 3º. Portanto, editada quando do regime de exceção, trazendo no Capítulo IV- “Dos Direitos e Garantias Individuais” no Título II – “Da Declaração de Direitos” o artigo 150, § 12, preceito esse que é a única referência sobre a matéria: “§ 12 - Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita de autoridade competente. A lei disporá sobre a prestação de fiança. A prisão ou detenção de qualquer pessoa será Imediatamente comunicada ao Juiz competente, que a relaxará, se não for legal.” Nesse período tivemos ainda a edição do famigerado AI-5 (Ato Institucional nº 5), de dezembro/1968, que deu poderes arbitrários e de exceção ao regime militar à época. Dentre as medidas editadas de tal ATO estão: “ Art. 4º - No interesse de preservar a Revolução, o Presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, poderá suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais. Art. 10 - Fica suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular. Art. 11 - Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos. “ A razão pela qual é necessário fazer essa digressão sobre as Constituições brasileiras tem motivação no fato da Constituição Federal vigente, de 1988, trazer inovação de suma importância, haja vista que o legislador constituinte entendeu que os “DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS” deveriam ter relevância e primazia. Por isso, tal constou do segundo Título da Carta Magna, inserido no início desta, ou seja, no CAPÍTULO I, que trata “DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS”. Ali foi inserido, foi “cravado”, porque o legislador constituinte, repete-se, deu extrema relevância aos DIREITOS FUNDAMENTAIS do cidadão, quiçá do que ocorreu no regime discricionário que vigeu por 21 anos no Brasil. Tanto isso é verdade que da exposição de motivos da Constituição Federal, extraído do site do Senado Federal, contém o seguinte comentário: “9. Situação da Constituição de 1988 no constitucionalismo brasileiro” “ 33. Ela assume a condição de instrumento de realização dos direitos fundamentais do homem. Albergam suas normas as fontes essenciais do novo constitucionalismo” Pois bem. Do artigo 5º, inciso LVII, cláusula pétrea da Constituição Federal, passível somente de alteração através de instalação de nova Assembleia Nacional Constituinte, está expressamente consignado: “LVII – ninguém será considerado culpado, até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;” No Direito Universal a expressão “TRÂNSITO EM JULGADO” tem uma única interpretação. No mundo jurídico isso significa PROCESSO FINDO, ou seja, processo cuja decisão não cabe mais qualquer espécie de recurso. Sobre a matéria objeto da análise: "Somente a sentença pena condenatória , ou seja, a decisão de que não mais cabe recurso, é razão jurídica suficiente para que alguém seja considerado culpado. ..... . A coisa julgada penal é a interferência lógica de uma necessidade de certeza nas relações jurídicas. A imutabilidade da sentença penal, absolutória ou condenatória, faz o processo findo, tornando impossível, dentro dele, em decorrência da preclusão, nova decisão sobre o mérito da causa. ... . Não mais sujeita a recurso, a sentença penal condenatória tem força de lei e, assim, o acusado passa ao status de culpado, até que cumpra a pena, ..... . “Trânsito em julgado” é o momento final do iter processual, ..... . A manutenção da ordem pública exige que não paire, no ar, a instabilidade e a incerteza das relações jurídicas, pelo que a coisa julgada se impõe como fundamental para o equilíbrio do grupo, firmando-se-lhe a imutabilidade pela inopobilidade dos recursos, que diante da decisão final se tornam inócuos. .... No instante preciso em que a sentença pena condenatória transitou em julgado, o acusado, até então, presumido inocente, passa ao status de culpado, porque a sentença penal de mérito, tornada irrecorrível, assinala o limite ou barreira em que o Estado exauriu seu poder-dever de acusar, ficando, desse momento em diante, liberto da obrigação jurisdicional penal. Só, neste instante, é que se pode dizer: “ A é culpado”. “ é criminoso” e, como tal, pode ser objeto de identificação criminal". Comentários à Constituição 1988, Vol I, J. Cretella Júnior, Ed. Forense Universitária, 2ª Ed., 1990, pág.537/38 E por qual motivação esse preceito constitucional, além da extrema importância que lhe deu o legislador constituinte colocando-o no Título II da Carta Constitucional, é cláusula pétrea da Constituição? Preocupou-se ele de que tal direito fosse garantido, mantido na Carta Magna, sem que houvesse a possibilidade de ser suprimido por Emenda Constitucional, caso algum governo futuro, forjado mais uma vez no arbítrio, pudesse com maioria congressual, suprimi-lo ou alterá-lo, adequando-o as “suas necessidades”. Tanto isso é verdade que consta do artigo 60 da CF na subseção II – Da Ementa Constitucional” , inserida na Seção VIII- “DO PROCESSO LEGISLATIVO” , o seguinte: “Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara de Deputados ou do Senado Federal; do Presidente da República; de mais da metade das Assembleias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, por maioria relativa de seus membros. § 1º - A Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio. “ E no seu parágrafo 4º, inciso IV, está expressamente consignado, cravado: “ § 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: “ “ IV- os direitos e garantias individuais." Logo, os dispositivos - todos eles - constantes do “TÍTULO II – DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS” cujo CAPÍTULO I tratam “DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS” não podem ser abolidos e nem, diria eu, alterados; dentre eles o constante do inciso LVII do artigo 5º, qual seja: “LVII – ninguém será considerado culpado, até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;” Essa norma universal no Direito reflete a “presunção de inocência” de qualquer cidadão, que como referiu o Ministro Adhemar Maciel (STJ, RT 699/385, RHC 2.989-0-PE) em julgamento fazendo alusão à “Presunção de inocência e liberdade provisória” são normas que “se travejam na viga mestra da “dignidade humana”, regra estruturante de nossos direitos fundamentais (CF, art. 1º,I). Concluo, pois, que a norma constitucional inserida na parte dispositiva mais importante da Constituição da República, chamada cidadã, foi simplesmente desconsiderada no julgamento do Habeas Corpus envolvendo Lula da Silva. Não cabe tergiversar sobre o tema, trazendo a baila questões como análise estatística (se recursos especial e/ou extraordinário tem insignificante alteração do julgado em 2º grau); demora dos processos ao ponto de ocorrer à prescrição; necessidade de dar uma resposta à sociedade, etc. Tudo isso são sofismas frente à GRAVE VIOLAÇÃO DA NORMA CONSTITUCIONAL em questão. Há mecanismos de se alterar esse quadro, tais como: por lei infraconstitucional diminuírem-se os recursos. Estabelecer Varas e Câmaras Especializadas para julgar crimes de corrupção ativa e passiva contra Entes Públicos. Criem-se fontes de custeio para aparelhamento mais adequado do Judiciário; dentre outras medidas, que deem celeridade ao processo a fim de que haja um julgamento mais rápido e que crimes não prescrevam. Todavia, em nome “disso” ou “daquilo”, não se INFRINJA a Constituição Federal, pois motivação para qualquer coisa cada um tem a sua. O Direito, desde priscas eras, teve criada a Teoria da Divisão dos Poderes a qual foi consolidada de forma definitiva na Inglaterra por Locke, tendo distinguido os Poderes em três: Legislativo, Executivo e Judiciário. Daí que em aperfeiçoamento a essa Divisão, chegou-se ao sistema denominado “freios e contrapesos”, que em síntese, nada mais é do que a busca de dar equilíbrio a esses três Poderes do Estado, de forma que reciprocamente atuem entre eles, sem que haja interferência e/ou superposição de algum Poder em detrimento dos outros. Contudo, no momento atual que vivemos, o sistema Congressual perdeu força significativa, visto que sua estrutura ainda é a mesma desde os tempos da ditadura, com os mesmos defeitos e mazelas. Por outro lado, o Executivo hoje tem como seus mandatários dirigentes envolvidos em escândalos de corrupção e dirigem a Nação, após um golpe parlamentar, sustentados por uma maioria de partidos envolvidos nos mesmos escândalos, trocando benesses. Resta então o Judiciário - que nesse momento, fortalecido por todo esse estado de coisas - como um suprapoder, em desequilíbrio aos freios e contrapesos. O Judiciário está no momento decidindo os desígnios da Nação, através de suas decisões, legislando e não sendo aplicador e executor das Leis tão somente. Precisamos é de uma reforma política, congressual, séria. De um Executivo legítimo. Caso contrário não haverá “Cristo”, Salvador da Pátria, que resolva. Retomando a matéria objeto desta análise, temos que a norma constitucional em questão é garantia de TODO cidadão, seja ele quem for, e a mais alta Corte do País, diga-se Supremo Tribunal Federal, tem a obrigação de dar o exemplo de que a LEI tem de ser cumprida em toda a sua extensão. O resto, ah! O resto é barbárie. *Caio Múcio Torino é advogado