Vilma Reis: Decidimos interromper a hegemonia branca na política

A socióloga, filiada ao PT, tentará ser a primeira mulher negra a governar Salvador e avisa: "Não haverá nada sobre nós, sem nós”

Foto: José Eduardo Bernardes
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Por Igor Carvalho e José Eduardo Bernardes, no Brasil de Fato  Durante o encontro internacional da Coalizão Negra por Direitos, no mês de novembro, em São Paulo, o movimento negro definiu como uma prioridade a conquista de espaços representação política. O foco na busca por representatividade ocorre em um dos momentos mais atuantes da história recente do movimento negro. Nos últimos meses, militantes estiveram em Brasília, onde combateram o pacote anticrime do ministro Sérgio Moro e lutaram contra o acordo que pode resultar na entrega da Base de Alcântara aos Estados Unidos e na expulsão de quilombolas de seus territórios. No exterior, o movimento denunciou o genocídio contra a população negra brasileira em ambientes até então ocupados somente pela branquitude brasileira, mesmo que de esquerda. Organização das Nações Unidas (ONU), Organização dos Estados Americanos (OEA), o Parlamento Europeu e até o Congresso dos Estados Unidos foram visitados pelos militantes. Na linha de frente dessa articulação está a socióloga Vilma Reis, que exige mudanças no comando de Salvador, a capital mais negra do país. Pré-candidata, ela pretende se tornar a primeira prefeita mulher e negra da história da capital baiana, atualmente governada por Antônio Carlos Magalhães Neto (DEM), herdeiro da elite política branca que há décadas manda no estado. Não é um ambição pessoal, mas uma demanda do movimento, explica Vilma Reis. “Nós não podemos aceitar que 15% de representação branca da cidade de Salvador, e os homens brancos que são uma minoria entre os brancos, tenham a hegemonia na representação da nossa cidade. Nós, do movimento de mulheres negras, em um ato de desobediência colonial e patriarcal, decidimos interromper essa hegemonia absoluta.” Um dos primeiros obstáculos, conta Reis, é enfrentar o domínio branco, mesmo nos partidos de esquerda. “Todas as carreiras dos brancos progressistas nesse país, nós construímos, todas. O nosso entendimento agora é que não é mais possível nos pedir para esperar, toda construção dos movimentos que vêm da rua para dentro dos partidos é que não haverá nada sobre nós, sem nós”, explica Reis. A socióloga pretende ser candidata pelo Partido dos Trabalhadores, ao qual é filiada desde 2007. Porém, o partido ainda não decidiu quem vai liderar a chapa para as eleições de 2020. Juca Ferreira, que recentemente foi demitido por Alexandre Kalil (PSD), prefeito de Belo Horizonte, da Secretaria de Cultura do município, é considerado um nome forte dentro da legenda na disputa pela capital baiana. Confira a entrevista na íntegra: Brasil de Fato: A senhora anunciou que é pré-candidata à prefeitura de Salvador. Como se deu essa decisão? Vilma Reis: Para nós, da Mahin [Coletivo Luiza Mahin], em Salvador e no estado da Bahia, é importante dizer que em 470 anos de ocupação colonial em nossa cidade – porque não houve descoberta do Brasil e muito menos fundação da cidade de Salvador – os herdeiros da colonização têm se mantido de forma absoluta no poder. O pré-Censo de 2015 nos deu um dado fantástico de Salvador, que mostra uma população de 85% de negros e negras. É um acinte, uma vergonha, é um absurdo para o mundo e para nós, aliás, para nós, da esquerda brasileira, tem que ser mais. Nós não podemos aceitar que 15% de representação branca da cidade de Salvador, e os homens brancos que são uma minoria entre os brancos, tenham a hegemonia na representação da nossa cidade. Nós, do movimento de mulheres negras, em um ato de desobediência colonial e patriarcal, decidimos interromper essa hegemonia absoluta. É importante dizer que nossa disputa não é com nenhuma outra pessoa negra, é para interromper essa hegemonia branca na cidade. O movimento negro, não de hoje, se queixa da baixa representação nos espaços de poder. A senhora concorda? Lélia Gonzales, em 1982, ao concorrer para deputada por uma decisão política do movimento negro, no Partido dos Trabalhadores, cumpria uma tarefa histórica determinada por nossos movimentos. Em 1986, Luiza Bairros e Luiz Alberto na Bahia, pelo PT, Edson Cardoso em Brasília, também no PT, e a própria Lélia no Rio de Janeiro, via PDT, se candidataram. O Movimento Negro Unificado (MNU) também teve candidaturas no PT e no PDT. Sem falar que todas as carreiras dos brancos progressistas nesse país, nós construímos, todas. O nosso entendimento agora é que não é mais possível nos pedir para esperar, toda construção dos movimentos que vêm da rua para dentro dos partidos é que não haverá nada sobre nós, sem nós. Esse é o desafio que nós estamos construindo com bases muito consolidadas. Não retiraremos nossas pré-candidaturas, não colocamos pré-candidaturas para negociar e nem por um jogo de pragmatismo político. Nós estamos há décadas construindo os partidos de esquerda, da velha e da nova esquerda. Não tem um partido de esquerda que tenha se erguido nesse país sem a nossa filiação em massa e não é aceitável que nossos partidos tenham uma hegemonia branca no comando. O que nós estamos fazendo é uma escola de ciência política, aberta e democrática, com participação popular, para repercutirmos esse debate em todo ao país, não podemos mais aceitar isso. Revolução boa começa em casa e se nós apostamos numa virada no Brasil, essa virada precisa acontecer nos nossos partidos. Então, é bom dizer que nossa presença nos espaços de poder e na linha decisória é importante para o conjunto da sociedade. Lembrando Lélia Gonzales, digo que nós não lutamos por uma sociedade para nós, lutamos por uma sociedade para todos. Citando Angela Davis, quando as mulheres negras se movem, move toda a sociedade. Nós vemos essa fotografia nas Defensorias, com uma geração de mulheres negras. A presença negra nas universidades, que nunca mais serão as mesmas. Então, esse último bastião precisa ser modificado, o poder nos partidos, quase todos eles controlados por brancos, brancos de direita e brancos de esquerda. Nós não aceitamos, porque nós construímos essas carreiras. A senhora estuda o encarceramento em massa no país. Os índices apontam para um crescimento vertiginoso e tragédias tomam conta das prisões. Qual sua reflexão sobre o tema? Fundamos um campo de pensamento no Brasil sobre as políticas de encarceramento. Nós colocamos o debate racial no encarceramento em massa e na questão das guerra às drogas. Parecia, há uma década, que era possível debater guerra às drogas sem falar em relações raciais, não é possível. Então, para nós, falar em abolicionismo penal, em novas políticas e descriminalização de drogas, isso não é uma pauta revolucionária, está na boca de reformistas no mundo inteiro. Nós pensamos que tirar o poder de morte das polícias e dos aglomerados que verdadeiramente comandam o tráfico de drogas é fundamental. Nós entendemos que não é possível debater um projeto de nação, sabendo que mais de 800 mil pessoas estão encarceradas e desse conjunto, 42% nem teve acesso a um julgamento. No máximo, tiveram uma audiência de custódia, naquele período de 24 horas e os que não tiveram o livramento condicional ali, estão presos. O abuso de prisão preventiva tem a ver com escolhas raciais dentro do sistema de justiça, que apela para o populismo penal e criminaliza corpos negros. É importante dizer que quando um homem negro é encarcerado, sua família é encarcerada. Nós cumprimos pena por extensão. São 2,1 milhões de pessoas implicadas diretamente no sistema carcerário. Tornozeleira eletrônica é a nova ferradura nos pés do homem negro. Tornozeleira para um homem branco de classe média tem outro sentido, ele pode se movimentar, mas ele não precisa pegar um ônibus, ele não precisa sair de sua casa para ter o mundo aos seus pés. Agora, tornozeleira eletrônica na canela de um homem ou de uma mulher negra é o fim de nossas vidas, você saiu de uma prisão e entrou em outra. Nós precisamos lutar pelo abolicionismo penal e isso tem a ver com lutar contra o racismo. Todas as pessoas brancas que tem uma postura antirracista, precisam confrontar o sistema penal do Brasil. É importante que se tenha essa empatia, mas para além da empatia, você tem que se colocar e confrontar o mundo branco que não se importa, por exemplo, com uma sala de custódia. Quando o defensor estiver numa sala de custódia, você não pode se comportar como alguém que está num clube de amigos. O mundo é redondo, mas a Defensoria Pública tem lado. Continue lendo no Brasil de Fato