A mulher que olha e as mulheres que são olhadas em “As herdeiras”

Confira, em primeira mão, a resenha de Cesar Castanha sobre o filme paraguaio "As herdeiras", que venceu o Urso de Prata e estreia no Brasil esta semana

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Só há um personagem masculino apresentado por nome em As herdeiras (dir. Marcelo Martinessi, 2018), filme paraguaio que venceu Urso de Prata de melhor atriz no Festival de Berlim e estreia no Brasil esta semana. O universo do filme é habitado por mulheres: herdeiras de uma hierarquia falida do Paraguai, mulheres de classe média, presidiárias, trabalhadoras, viúvas. A casa, que é o centro do filme, habitada por três dessas mulheres, aos poucos se desfaz com a venda de cada móvel — e outras mulheres circulam por ela, tocam a mesa, as taças, os talheres, admiram os quadros, perguntam os preços e vão levando os pedaços que restam dessas ruínas. Às herdeiras do título já não resta muita coisa. Chela (Ana Brun, premiada em Berlim) e Chiquita (Margarita Irun) vivem um casamento silencioso, nunca mencionado, na casa da família de Chela, em Assunção. Elas colocam à venda a maior parte do que foi herdado, mas isso não é o bastante para evitar que Chiquita seja presa por fraude, deixando Chela, que já é ela mesma mais vulnerável do que sua companheira, sozinha. Como uma maneira de complementar a sua renda, a personagem passa a dirigir para a sua vizinha, Pituca (María Martins), e as amigas desta. É por meio desse trabalho informal que conhece Angy (Ana Ivanova), uma mulher mais jovem, por quem Chela se sente atraída. Angy está rompendo um relacionamento e precisa da ajuda de Chela para levar a mãe a um tratamento médico semanal em outra cidade. Uma relação de intimidade rapidamente se estabelece entre as duas, e Angy passa a chamar Chela de pepón, ou boneca, como esta diz que o pai a chamava. Emulando o olhar de Chela, o filme nos apresenta Angy como vista pela protagonista, uma imagem interrompida pela própria hesitação do olhar, por paredes, pela janela do carro e pela necessidade de se olhar para o trânsito. Essa é a representação de uma mulher que se encanta por outra, de um desejo não declarado entre as duas, do receio presente no olhar. Enquanto as várias heranças de Chela são levadas embora, a personagem se divide entre o apego e um rompimento, aos poucos desenvolvido, com o espaço da casa. Parece, em dado momento, que Chela se sente mais confortável habitando as ruínas, a casa esvaziada, com as marcas de moldura dos quadros que um dia estiveram nas paredes. Pepón, a boneca, como seu pai um dia a chamou e Angy agora a chama, lembra uma Nora Helmer, personagem da peça Casa de Bonecas, de Henrik Ibsen, que também vê sua própria casa se arruinar ao seu redor, refém de dívidas e da exposição de contradições morais e ideológicas da sua classe. Chela, como Nora, reconstrói-se nas ruínas de uma aristocracia falida. Mas não é nunca uma redenção que está em jogo, apenas uma quebra, a reconfiguração de um espaço antes tomado como evidente. Chela começa o filme olhando para sua própria casa do modo como depois olharia para Angy: por frestas. A personagem ora observa Chiquita, ora o trabalho de Pati (Nilda Gonzalez), empregada doméstica contratada para cuidar de Chela e da casa na ausência de Chiquita. O que se revela no corpo dessas três mulheres olhadas é uma postura de imposição, uma resistência que as impede de serem resignadas pelo olhar de Chela. E o olhar de Chela não é nada além de um produto de suas contradições: é o olhar de uma classe média falida, de uma branquitude colonizadora e é o olhar de um desejo não dito, do silêncio lancinante de uma mulher lésbica. Ana Brun e Marcelo Martinessi percorrem com maestria as distinções desse olhar. Como parábola de uma América Latina contemporânea, As herdeiras leva Martinessi, em seu primeiro longa-metragem, a algum lugar próximo à Argentina que vemos nos filmes de Lucrecia Martel. De algum modo, repetindo as personagens de Martel, é como se a História controversa deste continente só pudesse ser acessada pelos fragmentos impugnáveis do olhar das mulheres que o habitam. Não é tanto porque conheceria, esse olhar, as casas do nosso continente, mas porque enxerga, destas, as suas ruínas.