A Omissão genocida?

Adriana Dias, em sua coluna na Fórum, apresenta uma entrevista com o engenheiro José Manoel Ferreira Gonçalves, que denunciou o presidente Jair Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional por crime de genocídio e crime contra a humanidade; confira

Bolsonaro com a cloroquina - Foto: ReproduçãoCréditos: Presidência da República
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A atitude do engenheiro José Manoel Ferreira Gonçalves, coordenador de um movimento da sociedade civil brasileira que denunciou o presidente Jair Bolsonaro, juntamente com o advogado Bruno Meirinho, a diversos órgãos da comunidade internacional, como a International Criminal Court, Human Rights Watch, Office of the United Nations High Commissioner for Human Rights (Michelle Bachelet), Organization of American States e o Parlamento Europeu, me motivou a entrevistá-lo.

Nessa entrevista, me detive em especial na denúncia realizada perante a Corte Penal Internacional, por crime de genocídio e crime contra a humanidade, protocolada em 14 de abril de 2020. Os pedidos clamam por investigações ou manifestações destes organismos internacionais por conta dos crimes à humanidade e o caráter genocida da postura do presidente brasileiro diante da pandemia de Covid-19. A peça de denúncia segue acompanhada por matérias internacionais sobre a responsabilidade do presidente brasileiro e o perigo que ele tem representado para os brasileiros durante a pandemia.

Na argumentação da denúncia ele descreve: “As consequências do comportamento do presidente incluem o aumento de mortes evitáveis, ocorrência de danos a membros da nação e a imposição de condições absolutamente inseguras e insalubres de vida que pode levar à destruição física de parte do povo.”

Nesse momento que chegamos a mais de cem mil mortes, é super importante ouvir a mensagem dos denunciantes e enfrentar o governo que se omite tão covardemente. 

Confira a entrevista.

Adriana - Como surgiu a ideia de denunciar Bolsonaro ao TPI?  

José - Em primeiro lugar porque a confusão gerada por ele nos parece uma estratégia. Ele sabe no que crê e deseja criar uma opinião pública que não saiba o que fazer, deseja criar insegurança. Eu acho que essa desorganização proposital é estratégica. Mais ainda: é uma estratégia para avaliar a capacidade que a gente tem de responder a uma ação assim. Ele cria um índice. Uma outra questão é que os pesquisadores estimam que na verdade esse número é muito maior e está sendo sub-notificado. Até agora, na epidemia, somos o único país que mudou três vezes de ministro. Há uma tentativa clara de dificultar o combate contra a epidemia.

Sinto um cansaço. No Brasil, há vozes médicas boas e, na Saúde, há vozes que se opuseram a esse governo, vozes importantes da área da Saúde que se opuseram ao governo. Mas, há no governo, constante discurso de ódio. E a gente chega à conclusão o presidente alimenta o discurso de ódio dando certa legitimidade para a sociedade alimentar o discurso de ódio. Então, você percebe que isso também pode acontecer na saúde e na engenharia e em outras áreas, o fato de que ele alimenta essa desorganização institucional. Ele instrui essa desinstitucionalização, insistindo, por exemplo, para as pessoas voltarem ao trabalho.

Adriana - O que pode ser feito para conter essa estratégia?

José - Por outro lado, cabe às instituições da sociedade civil, articuladas, defenderem a democracia, insistindo para um enfrentamento. O governo é genocida pois cria mecanismos para dificultar o combate à epidemia, desprotege populações vulneráveis, como as populações indígenas, e cabe à sociedade civil organizada defender a democracia.

Adriana - Politicamente, como você vê o Estado Democrático no momento?

José - Em desconstrução. A classe média precisa fazer uma autocrítica e compreender sua parcela de responsabilidade no processo em que estamos inseridos, precisa assumir a responsabilidade dela, para podermos estabelecer um enfrentamento.

Adriana - Bolsonaro recentemente assinou uma lei e vetou que os índios, por exemplo, recebessem água potável e medicação, um cuidado específico como população protegida pela ONU.

José -  Então, assim, claramente está acontecendo um crime de genocídio no Brasil. A sociedade tem uma alternativa porque não poderia permitir esse processo genocida. As instituições da sociedade civil deveriam estar mais articuladas com a democracia. Desde a AMB modelo (Associação Médica Brasileira) aos diversos sindicatos de todas as áreas, união de professores, OAB, todas as instituições deveriam priorizar um projeto de manifesto, de articulação pela democracia. Veja, a questão está denunciada em Haia. Como podemos fortalecer essa denúncia?  Mostrando como o Estado está matando os vulneráveis. A história nos colocou nesse momento, a gente tem que estar à altura da história. O que motiva nossa denúncia é salvar vidas.

Como funciona o TPI (Tribunal Penal Internacional)?

Segundo Ernesto Esteves Neto*, "no TPI é possível um indivíduo iniciar diretamente um caso, encaminhar para uma procuradoria. Ali, essa procuradoria tem uma função acusatória e nessa instância é feito um juízo de admissibilidade. Várias vezes existe a necessidade de requisitar informações, pedir maiores esclarecimentos e é feita uma apuração um pouco mais jurídica.

Na denúncia feita contra o presidente Bolsonaro as condutas narradas no documento são condutas omissivas. O estatuto de Roma traz uma série de condutas, tanto inseridas no âmbito dos crimes contra a humanidade, quanto nos crimes de genocídio, mas em geral são condutas cometidas, ou seja, são condutas de fazer, não de não fazer. E são condutas na maioria das vezes ostensivas.

Muito embora o fato de parte das condutas do Bolsonaro serem omissivas como, por exemplo, no caso de se omitir em realizar uma política de saúde voltada para a população indígena, se omitir com relação aos números, as vidas, aos protocolos de saúde que estão estabelecidos, ainda assim eu acho que existe viabilidade jurídica, até porque são tipos penais, um tanto quanto abertas.

Aquelas condutas ali muitas vezes são exemplificativas e não se esgotam apenas naquelas descrições. Essa não é, evidentemente, a melhor técnica do direito penal, mas nós não podemos esquecer que o Tribunal Penal Internacional tem tanto uma dimensão jurídica, evidentemente, como não poderia deixar de ser, mas também representa um papel político, e aqui eu digo isso com muita tranquilidade, não querendo ir por nenhuma escola realista para tentar explicar a relação entre política e direito. Não é nada disso. Ele tem uma simbologia, ele tem um apelo e ele foi criado para isso.

E de qualquer forma, com relação à denúncia feita contra o presidente Bolsonaro, é importante a gente lembrar que o Tribunal Penal Internacional, assim como outros tribunais internacionais, tem o princípio da competência competência (repetido assim mesmo), que vem de origem alemã - a ideia de que o Tribunal decide se ele é compete para determinado caso. Então, quem vai analisar, em última instância, se aceita ou se não aceita o caso do Bolsonaro, por mais amplo, por mais restrito, por mais completa que a denúncia possa ser, é o próprio Tribunal Penal Internacional".  

*Ernesto Esteves Neto é bacharel e mestre em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Foi coordenador do núcleo em Tribunais Internacionais da Universidade de São Paulo, entre os anos de dois mil e catorze e dois mil e quinze. Atualmente, é procurador da administração indireta do município de Araraquara e professor de direito internacional e penal da Universidade de Araraquara, Uniara.