A redoma de vidro do neoliberalismo

As autoras Sylvia Plath, Betty Friedan e Heleieth Saffioti, ao criticarem o modo de vida neoliberal, previram a crise existencial que hoje assola as sociedades ocidentais

Foto: montagem feita pela revista Fórum
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(…) eu via minha vida se ramificando à minha frente como a figueira verde daquele conto. Da ponta de cada galho, como um enorme figo púrpura, um futuro maravilhoso acenava e cintilava. Um desses figos era um lar feliz com marido e filhos, outro era uma poeta famosa, outro uma professora brilhante […] me vi sentada embaixo da árvore, morrendo de fome, simplesmente porque não conseguia decidir com qual figo eu ficaria. Eu queria todos eles, mas escolher um significava perder todo o resto, e enquanto eu ficava ali sentada, incapaz de tomar uma decisão, os figos começaram a encolher e ficar pretos, e um por um, desabaram no chão aos meus pés.
Sylvia Plath, A redoma de vidro, p.77

Publicado originalmente em 1963, o livro “A redoma de vidro”, Sylvia Plath, acompanha a vida de Esther Greenwood, jovem que, aos olhos da sociedade é o tipo ideal de mulher para o American Way of Life, que vivia o seu auge.

A primeira parte do livro de Sylvia Plath se dá em Nova York, quando Esther vai participar de um estágio de uma renomada editora de moda e, como a própria personagem vai nos dizer, “vivia o sonho de toda a garota”.
Porém, ao retornar para a sua cidade natal em Boston, Esther entra em um colapso e não consegue mais escrever e nem ler. A partir daí ela desenvolve um quadro de depressão que será tratado com eletrochoques.

No mesmo ano em que é publicado “A redoma de vidro”, também chega às livrarias dos EUA outro fenômeno editorial, trata-se de “A mística feminina”, de Betty Friedan. O livro de Friedan é apontado com o responsável por inaugurar a terceira onda do movimento feminista estadunidense (há um vasto material publicado sobre a questão das ondas do feminismo).

E qual é o assunto central de Friedan? A vida das mulheres do subúrbio americano que, apesar de rodeadas de eletrodomésticos criados para diminuir o trabalho doméstico, apesar da “casa dos sonhos”, do carro e de uma renda alta, há um mal estar que essas mulheres não conseguem compreender: tudo aquilo que sempre sonharam estava ali ao seu alcance, porém, há uma sensação de deslocamento e falta de ar (redoma) que tudo parece estar ruim.

Esse mal estar que não tem nome não foi uma criação literária de Betty Friedan, que era jornalista de uma revista voltada para mulheres e Friedan começou a notar uma semelhança entre as suas entrevistadas: tedio e depressão. É partir daí que Friedan, que se tornaria uma referência no feminismo estadunidense, vai a campo para buscar entender o que é esse mal estar que as suas entrevistadas não conseguem nomear.

Em 1976 seria publicada a primeira edição de “A mulher na sociedade de classes: mito e realidade”, de Heleieth Saffioti, onde a autora faz uma comparação das vidas das mulheres entre as sociedades do Brasil, EUA e União Soviética – à época havia este possível parâmetro.

Com as devidas proporções históricas e geográficas, Saffioti trava uma discussão sobre a questão da mística feminina e os objetos que passariam a compor o mundo das mulheres. Ampliando o escopo de Friedan e Plath, a socióloga brasileira traz a questão de classe e raça para traçar um outro olhar sobre o modelo de vida imposto às mulheres nas sociedades capitalistas.

Porém, qual é a ligação entre essas três e suas respectivas autoras? Plath, Friedan e Saffioti, isso há mais de 40 anos, já alertavam que o mal estar que as mulheres de classe média – e no caso brasileiro, em todas as classes -, viviam não era algo exclusivo do mundo das mulheres, mas sim um adoecimento do espírito típico das sociedades capitalistas. As autoras previram uma crise existencial que atingiria a todas as pessoas.

Nas três obras aqui citadas, as autoras vão trazer para o debate as falácias de que a medicalização e, em casos mais extremos, a internação seria a solução para o mal estar sem nome afligia as mulheres na segunda metade do século XX.

O alerta lançado pelas três autoras é que o tal do mal estar nome se expandiria… e elas estavam profundamente certas. Quando pensamos sobre as sociedades estadunidense e brasileira, temos de lidar com o fato de que são as duas que mais consomem remédios para ansiedade e depressão.

O mal estar sem nome está em todos os estratos da sociedade porque o modo de vida neoliberal se espalhou por todo o Ocidente; porque a vida precarizou; o mundo do trabalho foi corroído e hoje trabalha-se de 8h a 12h em empregos intermitentes e com ausência de direitos trabalhistas; vivemos na sociedade com a geração mais bem formada da história, mas também com a geração que não tem onde aplicar os conhecimentos adquiridos.

Vivemos sob uma epidemia de crise existencial que leva a países como o Brasil e EUA possuírem as mais altas taxas de suicídio do mundo.

Ao lermos as obras acima citadas devemos nos espantar ao encontrar nelas problemas sociais que ainda se fazem presentes, e pior, se aprofundaram. O mal estar sem nome hoje lota os consultórios psiquiátricos e enriquece a indústria farmacêutica.

A questão é que não há cura a partir do indivíduo para o mal estar sem nome, visto que esse é produzido pela redoma de vidro do sistema neoliberal que sufoca 90% da população e relega uma boa vida para o 5% mais rico do planeta. Não há tarja preta que dê conta desse modo de vida.