A retórica da reforma: como convencer os pobres a defender os ricos

Raphael Fagundes: “O poder de convencimento da reforma da Previdência defendida pelo governo é muito forte, principalmente porque os grandes veículos de comunicação dão suporte a ela”

Foto: Agência Brasil
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No Livro II, volume I de O Capital, Marx explica que o capitalista deve lançar no mercado um valor maior do que retirou. É o ciclo do capital. Este tende a se expandir, mas para tal precisa aumentar a massa de mercadorias no processo de circulação. Portanto, não se produz mercadorias para atender à demanda, mas para atender às necessidades de expansão do capital. A crise no sistema capitalista se dá, assim, devido à diminuição da troca de capital por capital e não necessariamente pela queda de consumo. A retórica da reforma da Previdência, que a descreve como algo imprescindível, vem para atender a essa lógica. É possível contornar o rombo da dívida pública por outros caminhos. Como controlar os juros, diminuir pelo menos em 30% as benesses financeiras, creditícias e tributárias, aumentar a arrecadação por meio da cobrança dos impostos sonegados pelas grandes empresas (mais de 50% estão ligados ao fundo previdenciário) etc (1). Contudo, essas medidas iriam interferir, mesmo que minimamente, nessa lógica do capital, na qual o capitalista deve colocar no mercado um valor maior do que aquele que retirou. O Brasil é o país das benesses para as empresas, das isenções fiscais, ou seja, um paraíso para quem tem como objetivo colocar no mercado um valor maior que aquele que subtraiu. Logo, não seria possível alterar esse mecanismo, pois as empresas torceriam o nariz, já que teriam que gastar mais na produção, aumentando o capital constante e fixo, devolvendo um valor menor que o que entregam atualmente ao mercado. Então, a única maneira para não prejudicar o ciclo do capital é fazer com que os mais pobres e a classe média arquem com os custos. Em vez de aumentar a arrecadação, o governo corta gastos. As empresas saem ilesas, mas, por outro lado, as camadas populares sofrem para bancar a manutenção desse sistema. É um raciocínio lógico, não podemos negar, está dentro da ciência econômica. Mas é vil, principalmente porque existem outros caminhos pelos quais um número bem menor de pessoas sofreria. A miséria é, portanto, uma opção econômica. Ou seja, a retórica está em afirmar que a reforma da Previdência é algo imprescindível, a única solução para nos salvar do caos. Toda retórica se baseia em uma lógica, é o básico do uso dos argumentos. A economia não é uma ciência exata, e cria suntuosas ilusões através de argumentos baseados em cálculos e em fórmulas que sustentam um ponto de vista econômico. Esse é um elemento discutido entre os economistas. Pérsio Arida destaca que “nenhuma controvérsia importante na teoria econômica foi resolvida através da mensuração empírica”. E ainda que “na história do pensamento econômico as controvérsias são resolvidas não porque uma das teses foi falsificada, mas sim porque a outra comandou maior poder de convencimento” (2). É uma questão de retórica. O poder de convencimento da reforma da Previdência defendida pelo governo é muito forte, principalmente porque os grandes veículos de comunicação (que possuem um grande poder de persuasão, por manipular os canais por onde circulam os discursos mais acessíveis) dão suporte a ela. Mas ainda assim o discurso contrário à reforma tomou as ruas ao lado das manifestações em defesa da educação. O poder de persuasão que sustenta a revolta contra a reforma proposta pelo governo vem mais da incompetência e trapalhadas do presidente e de seus ministros que da consciência econômica popular. E é isso que faz as elites começarem a duvidar do poder de persuasão do governo para aprovar tais medidas econômicas. Um outro ponto acerca da retórica é o lugar comum de se sustentar que todo remédio amargo aplicado para “salvar” o país é “culpa do PT”. O ministro da Educação, Abraham Weintraub, culpou os governos anteriores pela necessidade do contingenciamento. Mas na verdade o PT foi expulso do poder justamente porque não estava disposto a adotar essa política que fere o mais fraco para favorecer a acumulação e expansão do capital. A culpa dos cortes é do governo atual, que começou em 2016, e não dos governos petistas que, a partir de 2015, cogitaram ir por outro caminho, muito mais desconfortável para os investidores. Como uma estrutura de emprego precária, sem garantias, como a que foi aprovada pela Reforma Trabalhista, pode sustentar uma aposentadoria razoável, como a que temos atualmente? Se o governo busca depreciar a força de trabalho ativa, é preciso precarizar a aposentadoria. Uma coisa leva a outra. A Reforma Trabalhista tirou os direitos de quem trabalha, e ainda sentiremos o seu estrago quando a carteira verde e amarela começar a vigorar. A reforma da Previdência irá tirar os direitos de quem trabalhou, piorar o que já é ruim, embora seguro. (1)https://diplomatique.org.br/a-falacia-dos-argumentos-em-defesa-da-reforma/ (2)ARIDA, P. A História do pensamento econômico como teoria e retórica. In: GALA, P. e REGO, J. (orgs.) A História do pensamento econômico como teoria e retórica: ensaios sobre metodologia em economia. São Paulo: Ed, 34, 2003. P. 34.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.