A teocracia cristã que chama vítimas de estupro de assassinas

Leia na coluna de Henrique Rodrigues: Na filial tropical do inferno, as vítimas de um crime hediondo e os médicos que aliviam o sofrimento delas, com base na lei, são os demônios. Sobre os estupradores? Nada, nenhuma palavra

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A lata de lixo na qual fomos depositados parece não ter fundo. Descemos tanto na desumanidade que do poço de indigência já jorra um perigoso petróleo de alucinações que ameaça nossa existência como nação. Tudo isso já foi longe demais.

Recife, 16 de agosto de 2020.

Uma turba de fanáticos ensandecidos aglomera-se na porta de entrada do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), no bairro Encruzilhada. Lá dentro, uma garotinha de 10 anos, vítima de um monstruoso crime sexual no Estado do Espírito Santo, grávida, aguarda um procedimento médico determinado pela Justiça, que colocará fim à sua gestação. Ela corre risco de morte.

A macabra história da pequena menina, que chegou ao local agarrada a um sapo e uma girafa de pelúcia, acompanhada de assistentes sociais, revirou o estômago de todos.

Bem, "de todos" é muita gente.

As hostes delirantes paridas no esgoto da política ultrarreacionária que varre o Brasil resolveram acionar um verdadeiro mecanismo de guerra nas redes sociais. No entanto, a intenção não era dar apoio para minorar o sofrimento imensurável da criança.

A canalhada, disfarçada de emissários da bondade e do cristianismo, moveu montanhas e conseguiu mandar um exército de obtusos asselvajados para se ajoelhar em frente à unidade de saúde, de onde urravam quimeras, como hominídeos primitivos. Passaram, então, a tentar invadir o prédio, à força, chamando em coro os médicos e a pobre vítima de assassinos. A polícia precisou intervir, mas o fez com uma delicadeza atípica. Se fosse um grupo de sem-teto, certamente a porradaria teria corrido solta.

Uma escatológica figura do grotesco submundo bolsonarista, cujo nome ou apelido recuso-me a dizer (ela autobatizou-se homônima de uma mulher britânica que serviu como espiã nazista) foi às redes sociais e divulgou o nome da menor, o que é crime grave no Brasil, e direcionou os lunáticos recifenses dando o paradeiro preciso da menina, para que o local fosse sitiado pelos fundamentalistas.

Foi necessário que um grupo numeroso de mulheres com humanidade e compaixão corresse até o Cisam, para formar um cordão de isolamento físico e moral, e assim garantir o cumprimento da ordem judicial expedida pelo magistrado capixaba, que por consequência pouparia a vida da criança e diminuiria seu intenso sofrimento emocional.

Na filial tropical do inferno, as vítimas de um crime hediondo e os médicos que aliviam o sofrimento delas, com base na lei, são os demônios. Sobre os estupradores? Nada, nenhuma palavra. Nesse nojento jardim do Éden, infestado de psicopatas, eclode mais uma modalidade de ódio.

Aquilo que restou da sociedade civil brasileira precisa entender que, quem agarra-se a toda forma de torpeza, ignorando marcos civilizatórios, para se escudar atrás da bíblia, concebendo interpretações alucinadas ao seu bel-prazer, para usá-las como panaceia aplicável a todos os males do "mundo pecador", está, na verdade, nos empurrando para um precipício medieval.

Se continuarmos agindo com naturalidade em relação a esses monstros, não teremos outro destino senão o de sermos engolidos pela teocracia aloproda que eles já colocaram em marcha, que se soma a um outro punhado de sandices e concepções ridículas e agrestes que compõem o imaginário folclórico do bolsonarismo.

Decisões judiciais, sobretudo aquelas que determinam a preservação de direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal, como o direito à vida, devem ser cumpridas sem que precisemos ficar ouvindo as chorumelas da santa inquisição de arminha na mão.

Aos incivilizados e fanáticos, cabe o rigor da lei! Que falem sozinhos, dentro de suas casas, sem ameaçarem ou colocarem em perigo o Estado Democrático de Direito e a laicidade da República (que é uma lorota, mas está no papel).

Só a psicanálise é capaz de esmiuçar os labirintos sombrios de quem vive mergulhado em tamanho ódio. Eles temem tanto a besta do apocalipse que por inércia mental tornaram-se bestas e oferecem a nós esse apocalipse de maluquices.

Para evitarmos isso, a luz da civilização precisa estar sempre acesa e direcionada às trevas, iluminando cada passo dessa marcha ritmada pelo obscurantismo.


*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum