A versão brasileira do monstro de Frankenstein – Por Raphael Fagundes

"As elites queriam aproveitar apenas uma parte de Bolsonaro, a que servia para combater a esquerda, mas todo o teatro de demonização criado por elas acabou forjando uma personagem que só pode existir em sua totalidade"

Jair Bolsonaro - Foto: Marcos Corrêa/PR
Escrito en OPINIÃO el

Bolsonaro nasceu da premissa de que tudo era permitido para tirar o PT do poder. Em uma campanha de ódio agressiva, as elites bancaram campanhas midiáticas e o poder judiciário para forjar um vilão para a história brasileira. Esse projeto de demonização da esquerda pariu uma figura abominável, uma espécie de monstro brasileiro de Frankenstein.

Misturando restos de cadáveres que fundamentam o liberalismo e ideologias ultrapassadas, retrotópicas, anacrônicas, esse monstro vem destruindo Brasil descontroladamente de modo que aqueles que o criaram estão desesperados para contê-lo.

O que aconteceu foi um erro na construção do personagem. É como explica Mikhail Bakhtin, “na vida não nos interessa o todo do homem mas apenas alguns de seus atos com os quais operamos na prática e que nos interessam de uma forma ou de outra [...] Já na obra de arte, a resposta do autor às manifestações isoladas da personagem se baseiam numa resposta única ao todo da personagem".[1]

As elites queriam aproveitar apenas uma parte de Bolsonaro, a que servia para combater a esquerda, mas todo o teatro de demonização criado por elas acabou forjando uma personagem que só pode existir em sua totalidade. As elites agora se colocam contra a totalidade da personagem. Bakhtin salienta que “as personagens criadas se desligam do processo que as criou e começam a levar uma vida autônoma no mundo".[2]

Uma personagem pode se desvincular da visão de mundo do seu autor, aliás esta é a proposta de Bakhtin na Estética da Construção Verbal. A personagem segue o sentido do próprio texto. E assim as elites criaram a sua criatura nos moldes do doutor Frankenstein do romance de Mary Sheley.

Há duas forças, portanto, que as elites não conseguem controlar: as infernais descritas por Marx e Engels no Manifesto, isto é, as crises inerentes ao capital; e as personagens monstruosas que criam para tentar “controlar" tais crises.

A imprensa, ex-apoiadores e empresários dos setores industriais e do agronegócio assinam manifestos, incentivam manifestações populares, criam discursos inflamados para conter a fera, mas esta continua atuando de forma coerente ao cenário no qual foi inventada. É como nos diz Antônio Cândido, uma “das funções capitais da ficção é a de nos dar um conhecimento mais completo, mais coerente do que o conhecimento decepcionante e fragmentário que temos dos seres”.[3]

Bolsonaro age de forma coerente ao cenário que o elegeu, por isso forja conflitos o tempo todo. Alimenta ódio, vingança etc.. Estes elementos são fundamentais para provocar a adesão volitivo-emocional ao personagem em um romance de ficção.

A burguesia criou Bolsonaro não como um personagem de Balzac, um tipo social que representa uma classe, um tempo histórico. Está mais para um Dartanhã, como explicaria Umberto Eco, já que qualquer um poderia ser colocado neste papel para desenrolar a aventura.[4] 238. O problema é que (até por conta do fato de Bolsonaro viver em um contexto axiológico adverso ao dos autores que o criaram como presidente) o personagem acabou ganhando uma vida própria, autônoma, de modo que os seus criadores não tenham outra opção que não seja tirá-lo de cena.

O próximo 7 de setembro será um outro capítulo que trará a tona mais uma vez a tensão entre autor-personagem. Resta saber quais atores secundários entrarão em cena e que por fim poderão desbancar o protagonismo do personagem principal.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.


[1] BAKHTIN, M. A Estética da construção verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 4

[2] Idem, p. 6.

[3] CANDIDO, A. A personagem do romance. _____ et. al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1970, p. 64.

[4] ECO, U. Apocalipticos e integrados. Spain: Lumen, 1984. p. 238.