Agenda ESG: o novo discurso do capital para justificar a exploração de classe – Por Raphael Fagundes

Numa sociedade capitalista não são os interesses políticos, religiosos, jurídicos ou culturais que determinam os interesses econômicos, pelo contrário

Georg Lukács - Foto: Reprodução
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Por que é que em um momento de crise pelo qual passamos, tem se falado tanto em identidade, meio ambiente e responsabilidade social? Georg Lukács diria que isto é parte da “teoria do oportunismo”, que tem como objetivo reduzir a consciência de classe a níveis psicológicos e imediatos.

O capital criou a sigla ESG, uma nova ética de accountability corporativa, com o intuito de conduzir a crise do capital. No mesmo momento em que ocorre um aumento da exploração do trabalho com a perda dos direitos trabalhistas e uberização da mão de obra, as empresas reverberam incessantemente um discurso pautado numa agenda humanitária, de defesa do meio ambiente, atenção para as mudanças climáticas, inserção de minorias em postos de comando etc.

Esse capital em crise promove a ascensão de grupos políticos altamente reacionários, protofascistas, para em seguida apresentar a suposta solução, um mercado mais “humano”, mais “consciente”.

“Somente a consciência do proletariado pode mostrar a saída para a crise do capitalismo”, afirma Lukács. “Enquanto não existir essa consciência, a crise será permanente, retornará ao seu ponto de partida, repetirá essa situação até que, finalmente, após infinitos sofrimentos e terríveis atalhos, a lição pedagógica da história conclui o processo da consciência no proletariado e coloca-lhe nas mãos a condução da história”.[1]

Para impedir essa vocação histórica do proletariado, o discurso pequeno-burguês procura criticar as partes para, assim, nos cegar da totalidade. “Quando a crítica não é capaz de ir além da simples negação de uma parte, quando não é sequer capaz de aspirar à totalidade, então ela não consegue de modo algum ultrapassar o que nega”. Lukacs conclui que “essa simples crítica, feita do ponto de vista do capitalismo, mostra-se da maneira mais marcante na separação dos diferentes âmbitos de luta”.[2]

E funciona exatamente desta maneira. Os principais veículos de comunicação dão voz às lutas identitárias. A imprensa e a indústria cultural não cansam de levantar a bandeira das minorias. Manipulam o formato destas lutas colocando LeBron James como símbolo da luta antirracial e a Mulher-Maravilha como marca do feminismo. Um imperialismo cultural que quer impor, invadir a consciência de uma pobre mulher negra que pega o ônibus lotado para trabalhar de diarista na casa de patrões que a humilham. É covardia!

Se Lukács afirma que a consciência de classe se trata de uma lição pedagógica da história, ninguém melhor que Paulo Freire para nos falar sobre ela. O pedagogo brasileiro fala da “cultura do silêncio”, encontrada nas classes oprimidas, que ainda estão orientadas por uma consciência “semitransitiva”. Elas são silenciadas pela voz retumbante do opressor que as encara de forma fatalista. Como seres incapazes por natureza.

Mas com a melhora das condições sociais dos setores mais pobres, com o acesso maior ao mundo do opressor, com o enriquecimento dos instrumentos de crítica, as classes dominantes se depararam com um grande problema quando viram ser necessário aumentar a exploração para ampliar seus lucros em meio à crise econômica.

A crise decorrente de 2008, que levou a políticas de austeridade econômica, e a partir de 2011 com a queda dos commodities, a ascensão da China etc levou as classes dominantes do Ocidente a adotarem um novo discurso para colocar um novo véu entre os olhos do operário e sua exploração econômica. Foi necessário “buscar novas formas de silenciar as massas populares em emersão”.[3]

Fortalece-se a agenda, assim, ESG. É o compromisso ambiental, social e de governança. Estes aspectos são feitos de maneira não a prejudicar a estrutura de dominação. Os trabalhadores têm sua posição no processo de produção ocultada e são valorizados somente os elementos que o desviem dessa realidade objetiva. Não devem se ver como trabalhadores explorados, ou como membros das classes oprimidas.

Nesta lógica tanto a “classe em si” quanto a “classe para si” são aniquiladas. Os trabalhadores passam a ser valorizados por sua condição individual e psicológica. Ele merece por ser deficiente, negro, gay..., não por ser trabalhador. A consciência de si é cada vez mais valorizada em detrimento da consciência de classe.

O indivíduo é impedido de se ver como classe explorada para se ver como gênero e cor explorada. Deste modo, a injustiça social está no fato da estrutura negar a certos grupos lugares altos na hierarquia. Não é uma crítica que pretende abolir a sociedade hierarquizada, mas para que seja possível que os antes explorados cheguem à posição de explorador.

Esta luta para que mulheres e negros sejam CEOs de empresas não passa de uma forma que o capitalismo encontrou para manter a estrutura desigual, a estrutura de dominação dos que têm sobre os que nada têm. A exploração dos que são sobre os que não são trabalha (desde os tempos antigos) em prol da dissimulação da exploração dos que têm sobre os que não têm. Deste modo, a luta dos que não são contra os que são, por sua vez, trabalha para acobertar a luta dos que não têm contra os que têm. Ela serve como um véu que impede a observação da exploração puramente econômica. Sendo assim, é pobre porque se é negro, é vulnerável por ser mulher etc, não pelo fato de haver uma classe que precisa explorar outra para se enriquecer.

A dominação masculina, cristã, branca, esconde a dominação burguesa a ponto de o oprimido querer ser burguês para provar a sua capacidade, independentemente de sua cor, orientação sexual etc. É uma “consciência falsa” que busca adaptar os seres à realidade criada pela burguesia, e não questioná-la.

Numa sociedade capitalista não são os interesses políticos, religiosos, jurídicos ou culturais que determinam os interesses econômicos, pelo contrário. De modo que não são as lutas identitárias que pressionam os poderes econômicos, mas estes que determinam a direção daquelas, manipulando-as, transformando-as em interesses individuais e aspirações de postos na hierarquia social.

O capitalismo não mudará (ou deixará de existir) quando mudarem as cores e a orientação sexual dos opressores.

1 LUKÁCS, G. História e consciência de classe. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 184.

2 Id., p. 185.

3 FREIRE, P. Ação cultural para a liberdade. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1976, p. 74.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.