Álbum “O Amor, o Sorriso e a Flor”, de João Gilberto, completa 60 anos à frente do seu futuro

O álbum dura apenas 22 minutos de perfeição musical infinda. João canta e toca como nunca, a gravação é clara como poucos discos da época, os arranjos corretos, comedidos

Foto: Divulgação
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O álbum “O Amor, o Sorriso e a Flor”, o segundo de João Gilberto, completou no início deste confuso ano de 2020, aniversário de lançamento de 60 anos. O disco, considerado por muitos como um dos mais importantes da nossa música, traz o artista já alçado à categoria de gênio da nossa canção, apesar de ainda despertar – e assim foi por toda a sua vida e carreira – inúmeras controvérsias.

O álbum de João não aconteceu sozinho. É celebrado e cercado por uma série de acontecimentos daquele ano que marcaram definitivamente as nossas vidas de lá em diante. Entre eles, o principal é a inauguração, pelo então presidente Juscelino Kubitscheck, de Brasília, que se tornava a nossa capital Federal.

Os traços de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa se somavam ao canto de João, à Bossa Nova e mais um sem fim de modernidades que pareciam anunciar um novo país, pronto para o futuro. Mas que viria, poucos anos depois, sucumbir ao golpe militar, em 1964, nos provocando décadas de atraso em várias áreas.

A capa de "O Amor, o Sorriso e a Flor"

O álbum de João, no entanto, veio mesmo para acabar de transformar a nossa música, projeto já iniciado pelo seu anterior, “Chega de Saudade”. Ao seu lado nos dois discos, é sempre bom lembrar, estava o jovem maestro Antônio Carlos Jobim. Tom foi tão determinante na produção dos álbuns que ele sempre os considerou como de sua discografia.

O fato é que, por essas razões do destino que só ocorrem raras vezes, estavam reunidos nos estúdios da Odeon, no Rio de Janeiro, na época, a fome, a vontade de comer e os maiores talentos capazes para produzir aquela refeição. Além de João e Tom, estava lá o corajoso produtor Aloysio de Oliveira, sem a qual a Bossa Nova não existiria. Além dele, um grande time de músicos, técnicos e até mesmo excelentes artistas gráficos e fotógrafos para a capa.

O álbum dura apenas 22 minutos de perfeição musical infinda. João canta e toca como nunca, a gravação é clara como poucos discos da época, os arranjos corretos, comedidos. As pausas de João, suas emissões límpidas, o violão – que até então ninguém tocava igual – estava lá, no centro de tudo. No entorno, músicos excelentes e experimentados que as fichas técnicas da época se recusavam a citar.

O repertório une, curiosamente, canções magníficas de Tom Jobim, como “Samba de uma Nota Só” (em parceria com Newton Mendonça), “Só em Teus Braços” e “Corcovado”; o clássico de Dorival Caymmi, “Doralice” ao lado de outras um tanto tolas, como “O Pato”, de Jaime Silva e Neuza Teixeira e uma versão em português para "Trevo de Quatro Folhas", de H. Woods e M. Dixon.

Todas elas, no entanto, engolfadas pelo talento múltiplo de João, se transformaram em clássicos definitivos. Passaram a fazer por toda a história parte de um som que reunia a famosa batida do violão ao canto sereno e afinadíssimo, um tanto desviado do tempo. João repetiu essas mesmas canções ao longo da vida, entre elas a infantil “O Pato”, como se fossem sinfonias. E, na sua voz, assim se tornaram.

“O Amor, o Sorriso e a Flor”, de João Gilberto, chega à terceira idade anos à frente do seu futuro. Um futuro que nunca se concretizou.