Aos que defendem os autores do Holocausto, pergunto: com que Direito?

Em seu quinto artigo da série sobre o nazismo, Adriana Dias resgata as origens e justificativas nazistas para o Holocausto, bem como estabelece pontes com outras formas de extermínio registradas ao longo da história

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Quinto Ponto 5. Aos que defendem os autores do Holocausto, pergunto: com que Direito? Escrever sobre o Holocausto, antes de tudo significa revisitar dor. E diante da dor do outro, primeiramente, precisamos resgatar a maior possibilidade de empatia possível e oferecer respeito. Ao falar sobre vítimas, sejam da escravidão, do Holocausto, de genocídios, de massacres, de ditaduras, o oferecimento do respeito deve ser prioritariamente um pressuposto. Se você não pode oferecer isso, nem continue lendo. O Holocausto estarrece por inúmeros motivos: o imenso número de vítimas (que devem ser somados aos outros milhões de vítimas da Segunda Grande Guerra - para se ter uma ideia de quão terrível o nazismo significou, foram dois milhões de russos apenas na batalha de Stalingrado, por exemplo), há ainda todo o sistema burocrático estruturado do Estado nazi, determinado e organizado para matar, e registrar a morte, além de centenas de intelectuais, juízes e médicos envolvidos com diligência no processo, sim, tudo isso incomoda. Mas, o que mais me incomoda de fato é que o Holocausto determinava a morte de pessoas humanas, em pleno século XX, porque não considerava que aquelas pessoas deviam pertencer à humanidade, pois não eram tão humanas quanto os “arianos”. Ao determinar que pessoas com deficiência, alcoólatras,  judeus, ciganos, gays, lésbicas e comunistas, além de outros grupos, por motivos religiosos ou políticos, como Testemunhas de Jeová, não eram humanos, e deveriam ser eliminados, os nazistas defendiam a ideia que parte da humanidade pode determinar quem permanece ou não no mundo. A esses grupos os neonazistas acrescentam o negro, os imigrantes latinos, o islã, e no Brasil, o nordestino. No Japão, os chineses pertenciam ao grupo dos elimináveis, na época do Eixo. Para os arquitetos da destruição humana do governo nazista, ou para seus perversos seguidores neonazistas, nós somos culpados de não sermos como eles, e por isso somos elimináveis. No nazismo o assassinato em massa tomou diversas formas: furgões de gás passeavam por Berlim entre outras cidades alemãs, providenciando a eutanásia de mais de 200 mil pessoas com deficiência (isso sem falarmos nas mais de 400 mil esterilizadas na Aktion T4). Somemos: praticamente todos os ciganos deportados para o gueto de Lodz foram em furgões de gás no campo de extermínio de Chelmno na Polônia. Além disso, durante a guerra, apenas para o complexo de Auschwitz-Birkenau, foram enviados 20.000 ciganos e a imensa maioria eliminada.  No total, foram mortos mais de meio milhão de ciganos durante o período nazista. Além dos grupos citados, os povos eslavos, tidos como inferiores pelos “brancos”, também foram alvo da máquina de morte: ao menos 1,5 milhão de cidadãos poloneses (não judeus) foram deportados para o território alemão para trabalharem como escravos; e centenas de milhares também foram presos em campos de concentração nazistas. OS ALEMÃES ASSASSINARAM, NO MÍNIMO, 1.900.000 CIVIS POLONESES NÃO-JUDEUS DURANTE A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL, além de milhares de intelectuais e padres católicos, de todos os territórios ocupados, através de uma operação conhecida como AB-Aktion. O Museu Memorial Yad Vashem em Jerusalém nomeou mais de quatro milhões de vítimas judias por nome em seu arquivo pessoal, e tem listas que vão de  5,6 a 6,3 milhões de judeus mortos (a variação se dá porque muitas pessoas deslocadas nunca foram localizadas e não entram em listas de falecidos, ou entram, de acordo com o pesquisador[1]). Para além das contas dos milhões de mortos do regime nazista, a questão crucial é que, no limite, a concepção do Estado fundado no Nacional Socialismo determina quem é humano e quem não é. Aliás, essa é a essência de todos os massacres e genocídios. Opressores olham o outro como algo eliminável, a ser fuzilado, massacrado, destruído. Destituído de direito humano de existir, desumanizado do direito de existência. Obviamente, isso não começa com o nazismo. Voltemos no tempo. Estamos em Valladolid, entre 1550 e 1551, e começa o grande debate entre na Bartolomé de La Casas e Selpúveda. Registrada historicamente como Controvérsia de Valladolid, o debate se deu na cidade espanhola, entre frei Bartolomé de Las Casas, e Juan Ginés de Sepúlveda. A disputa aconteceu em dois grandes encontros para debates, algo muito tradicional dentro da forma escolástica medieval. O primeiro durou dois meses: entre agosto e setembro de 1550, e o segundo, em maio de 1551, ambos no Colégio de San Gregório de Valladolid. O debate não foi considerado concluso.  São temas da disputa: guerra justa, direitos indígenas, escravismo, direito de uso da força contra os indígenas. Eles se apresentavam, como costume escolástico, para uma junta de especialistas, convocada pelo imperador, e entre eles havia historiadores, filósofos, teólogos e juristas. A questão aqui é se é católico ou não escravizar. Se as “encomiendas” (mantenho no original espanhol o termo por entender que ele faz parte de todo um processo da América Latina espanhola) eram legítimas dentro da fé católica, tão preciosa a Isabel, a rainha colonizadora da América Latina espanhola... As “encomendas” eram um sistema de exploração dos indígenas, DADOS COMO ESCRAVOS PELOS REIS AOS COLONOS, em troca (a contrapartida) de uma parcela dos resultados obtidos pela ação do colono, como efeito da exploração da terra indígena, e dos mesmos, e pela evangelização dos povos indígenas. Um grande número delas foram dadas depois da morte da rainha, a partir de 1504, mas foram extintas em 1545, pelo imperador Carlos V, marido de Isabel, depois de grandes revoltas, influenciadas pela ação de Las Casas. Obviamente isso se deu sob a autoridade da Bula do Papa Alexandre VI, que conferiu os novos territórios à Espanha. A rainha promulgou algumas leis de proteção aos indígenas, mas elas não funcionavam na prática no sistema de colonização. Um aparte: não é por acaso que a partida de Colombo para a viagem que daria na descoberta da América veio depois da decisão da corte católica de expulsão dos judeus da Espanha. É prática do genocida expulsar o outro. Eliminá-lo. Grande apoiadora da Inquisição, Isabel também foi responsável, portanto, pela morte de centenas de judeus nos territórios espanhóis. Mas, voltando a Controvérsia de Valladolid, como explicou Renata Gomes de Andrade, em seu artigo “Com que Direito ?”, ao retornar a Espanha: “Las Casas toma conhecimento da obra do historiador da corte espanhola, Juan Ginés de Sepúlveda, intitulado Demócrates Segundo ou das Justas Causas da Guerra Contra os Índios, a qual considerou extremamente perniciosa à causa indígena, tendo conseguido evitar sua publicação. Sepúlveda defendia nesse livro que os índios eram seres inferiores, de costumes bárbaros e inumanos”. Selpúveda se baseava em dois grandes argumentos, o de “escravidão natural”, aristotélico, e o segundo era o denominado “guerra justa”. Os indígenas eram bárbaros, idólatras, selvagens, a escravidão seria uma forma civilizatória do domínio da “perfeição católica” sobre a imperfeição “humana indígena”. O poder dos Reis, dados por Deus, exigia a exploração e evangelização indígena. Segundo o defensor da “guerra justa”, a violência era necessária para castigar os índios por sua idolatria de séculos, e por se oporem à fé e à civilização, mesmo que essa violência fosse inimaginável. Para responder a Sepúlveda, Las Casas faz uso de uma brilhante argumentação. Algumas citações do livro que redigiu a partir do debate se seguem: - Por que os perseguimos sem que tenham merecido tal coisa, com desumana crueldade? - Sobre essas ovelhas mansas, e assim dotadas das qualidades mencionadas por seu Autor e Criador, caíram os espanhóis, assim que as conheceram, como lobos, tigres e leões crudelíssimos, famintos de muitos dias. E outra coisa não tem feito, de quarenta anos a esta parte, até hoje, sim, hoje, neste dia o fazem, senão despedaçá-las, matá-las, angustiá-las, afligi-las, atormentá-las e destruí-las por estranhas, novas e várias formas de crueldade, jamais vistas nem lidas ou ouvidas. - A razão pelas quais os cristãos mataram e destruíram tantas, tais e tão infinito número de almas foi somente para ter, como seu fim último, o ouro e encher-se de riquezas em muito breves dias, e subir a estados muito altos e sem proporção de suas pessoas (convém saber) pela insaciável cobiça e ambição que tiveram. - Os cristãos, com seus cavalos, espadas e lanças começaram a fazer matanças e estranhas crueldades com eles. Entravam nos povoados e não deixavam crianças, nem velhos, nem mulheres paridas sem que lhes rasgassem o ventre e as fizessem em pedaços. Como se dessem com alguns cordeiros dentro de seus apriscos. Faziam apostas sobre quem de uma facada, abria um homem ao meio, ou de um golpe lhe cortava a cabeça ou lhe abria as entranhas. Tomavam as crianças das tetas das mães, pelas pernas, e batiam com suas cabeças na rocha. Outros as jogavam em rios, pelas costas, rindo e gozando, e ao vê-las na água diziam: move-te, corpo de tal. As outras crianças enfiavam a espada juntamente com as mães, e assim com todos quantos encontravam diante de si. - Esta voz está bradando: vocês estão todos em pecado mortal, nele vivem e morrem, pela crueldade e tirania que praticam contra este povo inocente. - Digam: com que direito e com que justiça vocês mantêm estes índios em tão cruel e horrível servidão? - Com que autoridade vocês têm feito guerras tão detestáveis contra esta gente, que estava tranquila e pacífica em suas terras, onde a multidões incontáveis delas, com mortes e danos nunca ouvidos, vocês exterminaram? Os nazistas do Holocausto, os neonazistas do presente, os católicos na América Latina, todos os genocidas sempre usaram de um sadismo absurdo com suas vítimas. Suas palavras de ordem, exterminar, fuzilar, eliminar, algumas vezes acanhadamente escondidas sobre o pretexto de civilizar, tornar como nós, evangelizar. Não é por acaso que a religião se ocupou de muitos genocídios, Em 20 de janeiro de 1942, 14 homens, altos oficiais da SS e funcionários ministeriais, todos religiosos, quatro católicos e onze evangélicos, participaram do que se denominou Conferência de Wannsee. Nela se planejou o Holocausto. Como perguntou Las Casas: Com que direito?   [1] Holocaust. von Asmuss, Burkhard fala de 5,6 milhões de vítimas judias. Exclui alguns grupos de deportados das marchas, e outros massacres fora dos campos de extermínio. Confira, abaixo, os outros artigos da série