As milícias, a saúva e o Brasil

Cid Benjamin destaca, em sua nova coluna, o poder paralelo exercido pelas milícias no Rio de Janeiro, cujos chefes são figuras da intimidade da família do presidente

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
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A conhecida frase “Ou o Brasil acaba com a saúva, ou a saúva acaba com o Brasil” é mais antiga, mas ganhou notoriedade em meados do século passado. Chegou a ser apontada como de autoria do escritor Monteiro Lobato. Depois, porém, se descobriu que ela seria do naturalista e botânico francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), espantado com as grandes formigas que, com voracidade, destruíam árvores, pastos e grama. Naquele tempo não havia esses venenos modernos chamados agrotóxicos, que matam as pragas, mas envenenam também as pessoas. O escritor Mário de Andrade lembrou-se da frase e a pôs na boca de Macunaíma: “Pouca saúde e muita saúva os males do Brasil são”. Mais recentemente, em 1986, ela voltou no carnaval carioca pelo enredo da Escola de Samba São Clemente: “Pouca saúde e muita saúva são os males do Brasil”. Pois me lembrei da saúva, esse antigo vilão da vida nacional, quando esta semana lancei meu último livro – “Estado policial: Como sobreviver” na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, em Seropédica, município da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, a 75 km da capital do estado. Foi muito simpática a atividade. Houve um bom bate-papo com alunos e professores, seguido da venda de livros. Mas me chamou a atenção uma informação recebida de um professor da universidade, dando conta de algo que, para mim, era novo, ainda que o assunto seja objeto de minha atenção há tempos. A milícia local cobra uma espécie de taxa por qualquer festa que um morador promova em sua casa. É permitido receber amigos sem pagar nada, mas se houver música fica configurada uma festa e o morador tem que pagar uma taxa aos milicianos. Outro professor, então, que sabia da prática, ouvindo a conversa contou o que tinha sabido recentemente por um aluno. A história mostra o quanto vastas camadas da população estão nas mãos de bandidos acobertados pelas autoridades. Certa noite, a casa de um morador, que dava uma festa de aniversário de um filho, foi visitada por milicianos, que exigiram o pagamento de uma taxa de R$ 200. Para evitar problemas, o morador cedeu. Pouco depois chegou o pessoal do tráfico, cobrando também “uma contribuição”. Ela foi feita. Por fim, ainda na mesma noite, apareceram policiais militares, também exigindo dinheiro para permitir a continuação da festa. A região, como praticamente todo o entorno do Rio, é controlada por esses três tipos de quadrilhas, na maioria das vezes, com ligações entre si. Ao contar o episódio no Facebook, amigos acrescentaram outros exemplos da ação de milícias. Em São Gonçalo, também na Região Metropolitana do Rio, a milícia (grupo de paramilitares formado por policiais e ex-policiais e muitas vezes aliado a traficantes) danificou as redes de telefonia fixa. Com isso, impedia que as pessoas tivessem internet em casa. Mais: proibiu que os técnicos das empresas que vendem regularmente esse serviço fizessem os reparos. Depois, aproveitando a situação, venderam os serviços de gatonet (TV por assinatura pirata) como a única alternativa. Aos moradores restou apenas aceitar a situação ou abrir mão de ter internet em casa, usando apenas o celular. Não há a quem pedir socorro. Seria o caso de, como na música de Chico Buarque, chamar o ladrão. Em outro comentário ao post que fiz, outro amigo alinhou mais serviços, “oferecidos” pelos milicianos, a começar pelo mais notório: a “venda de segurança”. Pelo caráter compulsório e pelas consequências que pesam sobre as cabeças dos que recusam a “compra do serviço”, fica claro que a segurança oferecida é contra a própria milícia. Serviços (sempre vendidos a preços acima do valor de mercado), como a venda de botijões de gás ou de água fornecida por carros pipa em áreas em que o abastecimento normal é precário, são também vendidos compulsoriamente pelos milicianos. O mesmo ocorre com o chamado “transporte alternativo”, oferecido por vans controladas por eles em áreas servidas precariamente pelo serviço regular de transporte. As fontes de receita dos milicianos são variadas. Exploram máquinas caça-níqueis e praticam agiotagem nas áreas sob seu controle. Fazem a intermediação da devolução de carros roubados, em contato com seguradoras. Cobram “impostos” sobre qualquer transação imobiliária na área. Ocupam terrenos irregularmente, constroem prédios e os comercializam, com as milícias sendo ao mesmo tempo grileira, construtora e imobiliária. Expulsam moradores que compram a prazo moradias em programas de habitação popular, como o Minha Casa, Minha Vida, e alugam ou vendem os apartamentos, sem que o poder público ofereça proteção às famílias atingidas. Enfim, as milícias funcionam como máfias, controlando todos os aspectos da vida das pessoas nas áreas que dominam. Atuam, também, como quadrilhas de pistoleiros de aluguel e grupos de extermínio fora dessas áreas, vendendo seus serviços criminosos a quem pague por eles. Já foram contratadas por bicheiros em guerras no interior da contravenção e por políticos para a eliminação física de desafetos, como no caso da vereadora Marielle Franco. Esse quadro, em si, gravíssimo, tornou-se ainda mais preocupante devido à notória proximidade da família Bolsonaro com milicianos. Apesar dessa situação de verdadeira calamidade, na maior parte das vezes, o poder público fecha os olhos para suas atividades criminosas. Não é dada importância às milícias no chamado plano de repressão à criminalidade apresentado pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, em fevereiro deste ano, logo depois de tomar posse. Ganha um doce quem adivinhar as razões disso... Afinal, os principais chefes de milicianos são figuras da intimidade da família do presidente. De qualquer forma, dada a gravidade do problema e o alastramento do poder das milícias no Rio de Janeiro e em outros estados, só nos resta atualizar a antiga frase: “Ou o Brasil acaba com as milícias, ou as milícias acabam com o Brasil”.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.