Bolsonaro e a falência do falo

Tomaz Amorim diz: “A imagem envelhecida, adoecida, que fala gaguejando, que tem a expressão permanente no rosto de ‘como é que eu vim parar aqui’, é o representante ideal deste falo que não funciona mais. Eis sua força de sedução. Daí se reconhecerem nele tantos homens”

Foto: Luis Macedo/Câmara dos Deputados
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Logo no fim da campanha eleitoral, o filósofo Vladimir Safatle foi um dos primeiros a apontar uma contradição fundamental entre a visibilidade das pautas e posturas de Bolsonaro. Enquanto qualquer pessoa razoável via com preocupação a ameaça que sua eleição significaria para grandes grupos da população, seu plano econômico foi passando quase despercebido. Os absurdos ocupavam páginas de jornal e redes sociais, de esquerda e de direita, enquanto o mais material, as propostas específicas para a economia, a reforma da Previdência, ficavam como não dito. Não se tratava de acaso eleitoral, mas de cálculo preciso de sua campanha e de seu governo. Afinal, é melhor estar na mídia com pautas polêmicas, mas que encontram apoio em certos setores da sociedade (como tudo, hoje, que é associado à questão de gênero), do que relacionado a questões claramente impopulares como o fim do décimo terceiro, fim da estabilidade no funcionalismo público, fim de direitos trabalhistas, reforma dracônica da Previdência etc. Assim, a pirotecnia de absurdos, insinuações e ataques diretos a grupos historicamente oprimidos, sua onipresença midiática, a barulheira de sua voz nos celulares de todo o Brasil contrastou e contrasta radicalmente com sua discrição, sua polidez, sua timidez em relação às suas ideias econômicas. (Como também se disse no WhatsApp, ele fala muito sobre gays, mas sobre economia ele diz que não entende). Esta estranha vocalidade não se reduziu à campanha eleitoral, como o vexame em Davos deixou claro. Bolsonaro e seus filhos falam sobre tudo, agridem a democracia e adversários, querem sabotar consensos políticos e educacionais de décadas, mas sobre as coisas que realmente importam, os dilemas do Brasil, seu desemprego, sua violência, sua saúde precária, sua educação básica insuficiente, eles se calam. A solução para tudo, quando é apresentada, é privada. O presidente diz sobre sua responsabilidade na área da segurança: compre armas para se proteger. O presidente diz sobre sua responsabilidade na área da educação: eduque seus filhos em casa. Sobre economia, no entanto, o presidente nem fala. Quando se pensa toda essa candidatura, todo esse governo da perspectiva de gênero, arena, para bem ou para mal, em que ele se colocou e foi colocado desde o princípio, há então um sinal trocado, uma contradição gritante em relação à sua virilidade propagada. Talvez seja o momento de descer um pouco nesse lamaçal ideológico para entender a pretensão de poder que embebedou tantos eleitores no ano passado e ainda embebeda tantos apoiadores. Como é possível que o grande líder, o grande pai, fale sobre tudo, menos sobre o poder de fato? Como compreender que por trás de um sisudo conservador nacionalista, há um alegre liberal com sanha privatizadora e abertura para todo o capital internacional? Analisar este governo do ponto de vista de sua masculinidade não restringe a luta contra a sua agressão às minorias e maiorias como são mulheres e negros no Brasil. Isso porque, como Rafael Zacca lembra, em uma tentativa de traçar elementos importantes deste “fascismo tropical”, o poder se manifesta durante a maior parte da história deste país como poder patriarcal. Na casa grande, na caserna, na igreja, nas famílias, o poder foi sempre falado através de uma voz masculina e, quase sempre, branca. Claro que com um passinho para trás, com uma visão internacional mais ampla, percebe-se que por trás desta voz doméstica, há sempre uma voz mais forte, mais viril e mais branca – trata-se, afinal, de uma (ex-)colônia. O movimento do mercado internacional se mistura, assim, com a voz paterna, por trás de um grande homem há sempre um homem maior, por trás de um pai de família que já não consegue sustentar a casa sozinho (sustento do qual depende sua honra, como ensinou o pai antes dele) há um pai nacional que fala grosso sobre tudo (menos sobre economia), há um Paulo Guedes, que comanda a maior economia do continente seguindo as ordens de homens maiores e maiores até o falo supremo que, com o perdão da imagem, enraba a todos: o Pai Mercado. Infelizmente, essa orgia exclusiva para homens não tem nada de prazeroso. Todos gozam, mas em uma sublimação perversa, apenas através do falo imaginado do pai. Onde sou impotente, onde falha meu falo, meu poder econômico, meu reconhecimento público, onde eu não consigo mais agir com a potência que a (ex-)colônia patriarcal ainda espera de mim eu me empodero, ainda que por um breve momento, através de um falo maior e imaginado que me preenche com um restinho daquele poder quase extinto. Eis a imagem viril das últimas eleições, o sistema hidrodinâmico de virilidade que vai aos poucos, a cada manchete de jornal, a cada recuada, ficando mais flácido. Do CEO de algum banco internacional, por Paulo Guedes, por Bolsonaro, para o coordenador regional de campanha, para o patrão, para o funcionário, para as mensagens sempre encaminhadas, nunca escritas por eles mesmos, para os grupos de WhatsApp de família, da igreja e do futebol: um grande enrabamento político em que cada um na sua vez abre mão da própria voz para que fale, de novo, o grande pai, o grande ausente. Para que fale o falo faltante em mim, que fale aquele outro, maior que o meu. Claro, para que uma ciranda masculina com afetos tão homoeróticos funcione abertamente, durante tanto tempo, é necessária uma camuflagem de proporções históricas e nacionais, camuflagem oferecida justamente pela ideologia profundamente homofóbica e misógina. É preciso odiar, punir quem ousar fazer abertamente o que nós fazemos de forma cifrada, escondida. Ai de quem trouxer à tona o que precisa ficar escondido. Uma declaração sintomática foi a do próprio Bolsonaro para um jornalista sobre afirmações de opositores de que ele deveria sair do armário: “O pessoal costuma dizer que meu armário é de aço”. Quer dizer que, afinal, ele está dentro de um armário? Gênero e economia se juntam novamente não porque um é apenas distração para o outro. A crise do homem médio, o pai de família frustrado pela situação econômica, que se sente menos homem porque não consegue cumprir os compromissos econômicos que seu pai antes cumpria (compromissos que, em outra economia, eram possíveis, aqui e no mundo), é o nervo onde a economia e a política se encontram com a questão de gênero. A contradição gritante da questão suspensa entre a materialidade do salário e a virtualidade da identidade está no fato de que, ao contrário do que os técnicos da misoginia propagam, os responsáveis não são a entrada das mulheres (brancas) no mercado formal de trabalho ou os modelos alternativos de família, identidade de gênero e manifestações afetivas não normativas, mas justamente estes velhos homens por detrás que sussurram nos cangotes suas ordens a serem repetidas pelos pequenos homens enfraquecidos na ponta. É justo detrás, das próprias fileiras, que vem o bloqueio da possibilidade de “ser homem”, imperativo que pesa sobre cada homem que cresceu nesta sociedade profundamente patriarcal. Não a esposa que quer estudar e trabalhar, não os gays, não os negros que buscam cotas nas universidades, não Pabllo Vittar, mas o desejo de lucro dos investidores invisíveis que abaixam o salário, fecham fábricas, permitem a inflação, desmontam o sistema público de saúde e educação, e sussurram todas estas ordens para o presidente da república que tenta sussurrar agora para a grande horda masculinizada de seus seguidores: um atrás do outro. Seja homem, me siga para que juntos sejamos ainda menos homens juntos. Mas sem viadagem! A imagem física de Bolsonaro e sua saúde frágil encarnam psicanaliticamente essa contradição quase como grande ato falho da história, como imagem mesmo do inconsciente coletivo desta masculinidade em plena decadência. Eis, justamente, um dos aspectos de sua sedução. Não bastaria um filho com metralhadoras e ex-namoradas sexualmente insatisfeitas publicamente nas redes sociais, não bastaria um ex-ator pornô com problemas de disfunção erétil, é necessário também ser um pai decadente. A questão do poder, da reprodução dos filhos e do poder, em toda sua já quase impossibilidade, passa por aí. A imagem de Bolsonaro não é viril, forte, apesar da carranca e do medo de dar um abraço. Ironicamente, eram Haddad e Ciro Gomes que representavam muito mais o perfil de galã, de homem que fala grosso e com autoridade sobre o assunto que jura que domina, o tipo de candidato bonitão que ganha voto tocando guitarra, andando de bike, desafiando o adversário para duelo em debate público etc. A imagem envelhecida, adoecida, que fala gaguejando, que tem a expressão permanente no rosto de “como é que eu vim parar aqui”, a imagem decadente mesmo de Bolsonaro é o representante ideal deste falo que não funciona mais. Eis sua força de sedução. Daí se reconhecerem nele tantos homens. Ele, no fundo, é mais um destes falos falidos, destes que reivindicavam para si ocupar na sociedade uma posição de maior poder e, na decepção, no ressentimento permanente (mesmo depois das eleições!), se limitam a reproduzir as ordens do falo maior (privatize, diminua a aposentadoria dos velhos, marche, berre, invada a Venezuela), último contato desta versão triste de homem com o poder velho que eles foram ensinados a buscar. Bolsonaro e essa masculinidade falida, ainda reivindicada por grandes grupos da população, homens e mulheres órfãos da ideia de grande pai, não entendem o que já é óbvio para praticamente qualquer jovem da geração que ocupou as escolas. Estes meninos, meninas, intergêneros e todas as variações de gênero e sexualidade que eles nos apresentam e apresentarão ainda, já sabem e nos ensinam que há outras formas de masculinidade a serem inventadas, que há outras formas de compartilhamento de poder, de formar famílias, de ser solidário e viver em conjunto que não passem por concentrar o poder, por sofrer sob o peso do poder e de sua ausência, resumo, no fim das contas, da situação atual. O poder, se for estritamente necessário que exista da maneira como existe hoje, pode ser dividido, diluído, compreendido em suas armadilhas e praticado coletivamente, atravessando as divisões de gênero, raça, classe. Estes meninos, principalmente, sabem que ninguém é mais ou menos homem pelo que pode prover, que prover não é masculino, que a ligação direta entre as duas coisas é ela mesma parte do problema da dificuldade de homens proverem para si e seus amados. Que apenas repensando a economia de outros pontos de vista é que se poderá viver melhor como homem ou tudo o mais que se for e quiser ser.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.