Caetano Veloso reflete sobre o Vale do Silício em canção inédita

A canção “Anjos Tronchos” remete aos grandes momentos do compositor, com palavras profusas, versos longos e reflexivos sobre a melodia quase roqueira que se alterna com um trecho lírico

Foto: Fernando Young/Divulgação
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Foi lançado nesta sexta-feira (17), “Anjos Tronchos”, single do álbum “Meu Coco”, o primeiro de canções inéditas de Caetano Veloso desde “Abraçaço”, de 2012. A faixa aborda, entre a perplexidade e a profunda compreensão – que o compositor nega –, as reviravoltas e o pleno domínio que a revolução digital provocou e exerce na vida contemporânea.

“É uma canção que pensei que não ia poder fazer por inteiro, por causa do meu desconhecimento da matéria, do assunto”, diz o compositor. “Eu prometi a mim mesmo que se eu quisesse fazer uma coisa dessas, precisaria saber muito mais. Para saber mais, eu precisaria usar mais a internet, saber mais o que acontece nas redes sociais”.

“Embora eu não conheça muito a questão da tecnologia e das suas consequências, eu fiz uma canção que parece mexer em questões muito maiores do que seu autor é capaz de dominar. Tem muitas canções que tiveram resultados políticos, na formação da cabeça de gerações, de áreas da sociedade, e que não foram feitas por uma pessoa que conhecesse teoricamente a complexidade daquele assunto. Eu terminei pensando: ‘Deu para fazer uma canção que pode ser como uma dessas’”, conclui.

Capa do single 'Anjos tronchos', de Caetano Veloso — Foto: Fernando Young

Modéstia de Caetano à parte, até mesmo a incompetência diante da aparente ignorância que todos nós sentimos com relação ao Vale do Silício e seus algoritmos, que passaram a enriquecer exponencialmente seus autores, habita um limite bem claro entre o que é tecnologia e o que passou a ser um novo modo de vida e comunicação.

E é exatamente aí que a canção de Caetano entra, a partir do próprio título, que apelida de tronchos, ou seja, cortados, mutilados, os anjos que, conforme ele diz “vivem no escuro em plena luz”. O compositor se refere de maneira crítica aos donos das plataformas digitais que, de acordo com ele:

No império e nos seus vastos quintais

Ao que revêm impérios já milenares

Munidos de controles totais.

Anjos já mi ou bi ou trilionários

Comandam só seus mi, bi, trilhões

E nós, quando não somos otários,

Ouvimos Schönberg, Webern, Cage, canções…

A canção remete aos grandes momentos do compositor, com palavras profusas, versos longos e reflexivos sobre a melodia quase roqueira que se alterna com um trecho lírico, sempre a lembrar que todos os sons e mundos cabem no seu universo.

O verso chave de “Anjos Tronchos” aparece no final, no momento em que, noves fora nada, o compositor se dá conta que, apesar de não dominar os segredos do algoritmo, a simplicidade se desvenda no fato de um grande sucesso mundial ser produzido dentro de um quarto por dois adolescentes: E enquanto nós nos perguntamos do início, Miss Eilish faz tudo do quarto com o irmão, conclui o compositor, se referindo ao single que a cantora e compositora norte-americana Billie Eilish lançou em 2016.

Tão contemporâneo quanto sempre foi, Caetano aparece com o que parece ser a ponta do iceberg de seu novo lançamento, esperado para o último trimestre de 2021 e há alguns meses de completar 80 surpreendentes anos, para quem se mantém tão disposto e antenado.