Décadas neoliberais e ascensão fascista: duas faces do mesmo erro (II)

“Hoje, igualmente, através da barbárie social somada à exploração ambiental acelerada, a meia dúzia de donos do mundo tenta adiar à força a desordem que instalou”, diz Yuri Martins Fontes

Foto: Roberto Stuckert Filho/PR
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Como exposto na coluna passada, o ascendente fascismo “social” (embora ainda não propriamente “político”) que vivemos no Brasil, e em muitas nações do mundo, é um processo que resulta da impotência das classes dominantes em manter seu discurso aparentemente “democrático”, em uma época na qual a crise econômica capitalista se aprofunda – e, portanto, a retirada bruta de direitos sociais torna-se ponto crucial para a manutenção dos lucros do capital em alta. ***** O regime hegemônico capitalista, no intuito de esmagar a grande força eleitoral do reformismo trabalhista (que emerge no século XXI em diversas partes do mundo pobre, dado o desgaste das políticas neoliberais antipovo), busca forçar aqueles que realmente trabalham a pagarem os prejuízos da desordem econômica e violentas crises (especialmente a de 2008) – caos criado por sua própria ambição e falta de planejamento. Isto é feito mediante a regressão dos direitos sociais, o que acaba por abrir alas ao processo de desumanização social em que vivemos (discursos de ódios, xenofobia, racismo), em que cada grupo social culpa o grupo ao lado – e não o grupo “de cima”, como deveria ser – pela sua desgraça. Tal desunião faz o movimento popular perder força e facilita a desconstrução de direitos sociais (trabalhistas, previdência etc) operada pela classe dominante. Foi assim que, no caso brasileiro, nestas últimas eleições os neoliberais (tucanos etc) flertaram explicitamente com o fascismo ideológico capitaneado pelo supostamente mal esfaqueado ex-militar, do qual não se deve dizer o nome. O resultado foi que as elites econômicas perderam o controle do próprio monstro fascista que criaram. As manobras sociopolíticas e jurídicas, necessárias para concretizar o golpe, foram absurdas em tal dimensão que o Brasil chegou a ser, já por duas vezes, denunciado pela ONU por atitudes antidemocráticas (sendo criticado até mesmo pela centro-direita europeia!). O país, outrora “emergente”, viu então claramente enfraquecido seu protagonismo geopolítico (veja-se nosso isolamento nos BRICS), o que teve obviamente derivações econômicas. Fascistização social e crise capitalista: duas faces do mesmo problema A crise estrutural capitalista – que se explicita cruamente em 2008 – se aprofunda. Isto pode ser visto no desemprego crônico que afeta as populações de todo o globo, bem como no gradual aumento da concentração de poder nas mãos de cada vez menos empresas que monopolizam os principais setores da economia mundial. Diante disso, desde os anos 1980 (a primeira das duas “décadas perdidas” neoliberais), o centro do sistema tenta enrijecer a exploração do trabalho, mediante políticas antissociais, tais como as retiradas de direitos trabalhistas, previdenciários, culturais, educacionais e de acesso à saúde pública (dentre outros direitos humanos que precedem o hipervalorizado direito ao “voto”). Neste contexto, um dos fenômenos mais aterradores da crise estrutural tem sido o fortalecimento ideológico fascista – com o qual vêm flertando as direitas de todo o mundo (que até há pouco se arrogavam ter posições “racionais”). Como já observaram diversos pensadores do contemporâneo, o capital, em seu mergulho desorientado na própria crise que criou – econômica, social, ambiental, cultural –, efetua agora um novo giro totalitário, semelhante ao nazifascismo dos anos 1930/1940. Naquele tempo, os regimes capitalistas, em resposta à “Quebra” econômica de 1929, conseguiram costurar sua ideologia econômica liberal-libertina afinadamente com governos fascistas puro-sangue, na esperança de que essa aliança destruísse a União Soviética. Mas sem esperar, alguns países do “centro do sistema” (Europa Ocidental e Japão, especialmente) destruíram-se também a si próprios. Hoje, igualmente, através da barbárie social (precarização do emprego, altíssimo nível repressivo e carcerário etc) somada à exploração ambiental acelerada, a meia dúzia de donos do mundo tenta adiar à força a desordem que instalou, de modo a minimizar (ao menos no curto prazo) a tendência geral de queda na taxa de lucros – ideia de Marx que hoje tem sido verificada empiricamente até mesmo por economistas mercenários a serviço da “ordem”. Fim da democracia “eleitoral” capitalista Com isto, o único direito humano reivindicado pelo ultraliberalismo capitalista, o voto popular, perde seu protagonismo; deixa de ser “vendido” como algo realmente importante – como o fora nas épocas em que a associação conservadora entre a mídia corporativa e a educação de baixo nível lograva facilmente domesticar as eleições segundo os interesses da ínfima classe dominante. Há algumas décadas Carlos Nelson Coutinho bem notou que a “democracia”, se reduzida ao direito ao voto, não é um “valor universal” – mas apenas um dos tantos meios possíveis de resistência. Um meio frágil, aliás, como temos visto em episódios de golpes contra presidentes eleitos (Brasil, Paraguai, Honduras...) ou tentativas de golpes (guerras híbridas) contra Cuba, Venezuela, Nicarágua, Haiti, Líbia, Síria, Irã e todo país não alinhado ao declinante eixo EUA-UE. É o Império estadunidense surgido em meados do século XX em seus últimos movimentos, antes de ser ultrapassado em capacidade econômica e bélica pela aliança tripartite eurasiática – sino-indo-russa – que rapidamente se consolida e ganha espaços.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.