Deixa este mundo Ciro Marcondes Filho, o escavador de silêncios..., por Wilson Ferreira

Queria escavar o novo, cujas ferramentas de prospecção, ironicamente, se esconderiam nas camadas do passado. Professor e orientador desse humilde blogueiro, a existência desse blog deve-se diretamente à sugestão de Ciro e da professora Glória Kreinz, em conversas pós-aulas: “por que não faz um blog?”.

Foto: Arquivo pessoal.
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Faleceu nesse domingo (8), aos 72 anos, um dos mais importantes teóricos brasileiros da Comunicação e do Jornalismo, Ciro Marcondes Filho. Um pesquisador, professor e educador para o qual rótulos não eram coisas bem-vindas: silenciosamente, à margem do mainstream acadêmico da mera replicação das teorias tradicionais, construiu uma nova metodologia e filosofia da Comunicação a partir do resgate do pensamento dos estoicos à crítica contemporânea da Metafísica e a Fenomenologia de nomes como Bergson e Merleau-Ponty. Ciro não era um escavador de coisas fossilizadas, como dinossauros (que, aliás, queria envenená-los...). Queria escavar o novo, cujas ferramentas de prospecção, ironicamente, se esconderiam nas camadas do passado. Professor e orientador desse humilde blogueiro, a existência desse blog deve-se diretamente à sugestão de Ciro e da professora Glória Kreinz, em conversas pós-aulas: “por que não faz um blog?”... Nada mais gnóstico! Como Theodor Adorno, Ciro parecia querer resgatar aquilo que foi esquecido para se tornar ensinamento que auxiliasse na construção daquilo que é novo: o acontecimento comunicacional. 

Era 1984, um ano depois desse humilde blogueiro ter se formado em Jornalismo na Unisantos. O professor Ciro Marcondes Filho (CMF) tinha sido o orientador do meu Trabalho de Conclusão de Curso, um estudo semiológico barthesiano das manchetes do jornalismo político e econômico como ferramenta para evidenciar a existência do “discurso de poder” por trás da aparente neutralidade das primeiras páginas.

Ciro queria apresentar o meu TCC para o sociólogo Maurício Tragtenberg para, quem sabe, ser publicada pela editora Kairós. Tragtenberg fazia parte do conselho editorial e naquele momento a Kairós preparava o livro “Imprensa e Capitalismo”, de CMF. O encontro foi marcado na própria editora, para que ele desse uma olhada no meu TCC.

E lá fui eu para a rodoviária de Santos com meu TCC debaixo do braço, para descer na Via Anchieta e caminhar até a Faculdade Metodista de São Bernardo. Lá encontrei CMF (ele era professor da pós na instituição) e juntos rumamos para a editora Kairós, que se localizava, se não me falha a memória, na Avenida Paulista.

Ciro e eu saímos da Metodista, pegamos um ônibus e fomos ao encontro com o sociólogo Tragtenberg. Ônibus cheio, eu e Ciro em pé. De repente, ele me fez uma pergunta: “você tem certeza que quer dar aulas e ser pesquisador?”. Gaguejei um pouco, surpreso pela pergunta. Depois de alguns longos segundos me recuperei: “Claro... Mas por que a pergunta?”. “Por que você vai precisar ter estômago...!”, respondeu com um sorriso sarcástico. 

Com um inseparável cigarro dependurado no canto da boca, Tragtenberg deu uma olhada no meu TCC. Achou até interessante e pertinente, mas acabou não acontecendo a publicação. Esse episódio mostra a generosidade que marcou CMF em toda a sua carreira. Mais do que professor e pesquisador, era um educador que dava espaço e incentivo aos seus orientados para proporcionar condições ao surgimento do novo. Ou o chamado “acontecimento comunicacional”, como Ciro demonstrava através da sua Nova Filosofia da Comunicação, o acontecimento deveria ser a meta a ser seguida tanto pela comunicação social quanto pela comunicação interpessoal.

Mas também, a certeza de que o seu grande projeto que desenvolveria obsessivamente nas décadas seguintes (a crítica ontológica e metodológica do campo da Comunicação) somente produziria resistências no meio acadêmico, para si e para seus orientandos e seguidores. 

Perdemos nesse domingo (8) o pensador, pesquisador e educador Ciro Marcondes Filho, um verdadeiro “escavador de silêncios” (como era o título de um dos seus livros – “O Escavador de Silêncios: Formas de Construir e Desconstruir Sentidos na Comunicação”, de 2004). Um pesquisador que tinha a comunicação como uma obsessão. 

CMF era graduado em Ciências Sociais e em Jornalismo, com mestrado em Ciência Política pela USP e doutorado em Sociologia da Comunicação pela Universidade Goethe de Frankfurt. Foi professor por 31 anos no Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo – ECA/USP 

Fazia um trabalho silencioso e sistemático de escavação que resultou numa profusa produção acadêmica (mais de 300 textos entre livros, produções técnicas e artigos em coletâneas), cujo salto qualitativo ocorreu nesse século, com a sistematização da Nova Filosofia/Teoria da Comunicação. 

Um pensamento tão original que, naturalmente, bateria de frente com um campo de pesquisa comunicacional marcado por teorias elitistas, pesquisadores especializados na vigilância de conceitos e repetidores de autores, teses e dissertações, Cuja principal característica são longas páginas onde as notas de rodapé são maiores do que o próprio corpo do texto. Tamanha a falta de originalidade baseada unicamente em recorrentes citações.

Ciro costumava dizer que a semiótica, linguística, os funcionalistas norte-americanos ou os cultural studies britânicos (teorias há muito hegemônicas nas pesquisas brasileiras) parecem dar voltas em si mesmas, sem nunca conseguir chegar ao centro do círculo, ao verdadeiro objeto da comunicação, que é o fenômeno comunicacional do acontecimento. São teorias que sempre se limitaram a estudar comunicação a posteriori, como sociologia da comunicação, psicologia da comunicação,  discurso da comunicação etc. Confundem informação ou sinalização com comunicação. Nunca estudaram a comunicação em si, o acontecimento, o momento, o aqui e agora, a comunicação no momento em que ela se realiza.

Isso exigiria a fixação do “ponto zero” da história da comunicação, a descoberta do seu objeto, da ontologia dos fenômenos comunicacionais. Porém, também exigiria uma revolução epistemológica, a construção do “quase-método”, o “metáporos”, um método que abriria o pesquisador à complexidade, ao sensível e aos “incorpóreos”. Tal como na complexidade quântica, o pesquisador também está inserido no próprio “acontecimento” (daí a ideia de “poros” da comunicação).

Uma “Razão Durante”, uma intelectualização do fenômeno em seu processo, movimento. Por isso, fazendo o pesquisador abrir-se (intelectual e emocionalmente) ao novo, ao acontecimento.

Esse é o motivo pelo qual o pensamento de CMF era inclassificável e rótulos nunca eram bem-vindos. Sua complexidade transdisciplinar começava na Filosofia antiga, resgatando a velha noção de “logos”, na confluência entre Heráclito e Aristóteles, a compreensão dos fenômenos pela sua dinâmica contínua, passando pelo pensamento complexo e esquizo de Deleuze e Guattari, para chegar ao dilema de Dietmar Kamper: as ciências humanas sempre viveram o dilema de explicar processos que em sua natureza são incontroláveis e autônomos.

Ciro não queria fazer uma “pesquisa administrativa” (Adorno), mas libertária.

Para tanto, ele conduzia seus orientandos e alunos que invariavelmente lotavam as salas de seus cursos, desde o início dos anos 1980 (quando retornou do seu doutorado em Frankfurt), através da sua silenciosa e obsessiva escavação na busca do objeto perdido da comunicação. Começou escavando a ciência política e psicanálise, estudando o fenômeno da violência e do terrorismo. Tentava procurar a ideologia política não como efeito da propaganda ou massificação midiática, mas como fenômeno cotidiano, resultado nas relações interpessoais: Freud, Lacan, Lorenzer e os devires esquizos de Capitalismo e Esquizofrenia de Deleuze e Guattari.


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