Democracia e Genocídio – Por Juca Ferreira

Se não formos capazes de nos comprometer com essa meta civilizatória e nos diferenciarmos profundamente das forças políticas conservadoras e socialmente reacionárias, seremos vistos, como parte do lado opressor e privilegiado

Foto: EBC
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Diante dos muitos assassinatos praticados nas operações das forças policiais em quase todo o país, em nome da sociedade, da manutenção da ordem e do combate às drogas, não basta ficar indignado, postar algo na internet condenando esses crimes cada vez que eles acontecem. Eles acontecem quase todos os dias...

A sociedade brasileira, ou melhor, a parcela da sociedade que é respeitada pelas forças policiais, os que moram nos bairros onde as balas não se perdem, não podem continuar indiferentes, encarando como algo distante ou um fato natural essa grande quantidade de pessoas mortas por balas perdidas no Brasil.

Essas pessoas quase sempre são mortas por balas saídas das armas da polícia em operação nos bairros onde moram os trabalhadores pobres, nas periferias e favelas das grandes cidades brasileiras.

É uma constante, quase diária, nas últimas décadas em quase todas as periferias das capitais do Brasil e já faz parte do cotidiano da vida dos moradores dessas comunidades.

A insegurança nestes territórios é enorme e a polícia é parte do problema. Traficantes, milícias e polícia concorrem na infernização da vida destes brasileiros e brasileiras.

Quase todos os dias, temos pessoas mortas ou feridas gravemente por essas balas. Já são 595 o número de mortos, só no Rio de Janeiro no ano de 2021, vítimas dessas operações policiais. 

Pela escala, constância e abrangência em quase todo o território brasileiro, não pode ser considerada como uma simples arbitrariedade circunstancial ou um erro localizado dos que estão no comando dessas operações.

Muitas dessas vítimas são mortas dentro de casa. Quando não é a polícia que invade esses lares, é a bala que atravessa as paredes. Crianças alvejadas por balas perdidas dentro da sala de aula.

A quase totalidade dessas vítimas é negra. Segundo os registros, 79% das vítimas são negras e algumas são crianças.

Não é possível a convivência de uma democracia minimamente legítima com essa prática e esse extermínio. Não são fatos isolados, com significado trágico apenas para as comunidades vítimas desses crimes. A contaminação de todo o tecido social, a metástase em todo o corpo social do país é evidente.

Trata-se de uma estratégia de controle social.  São crimes praticados pelo Estado em nome da sociedade.

É o lado avesso da desigualdade social, o complemento, visto como necessário pelas elites econômicas e políticas preocupadas em manter a ordem vigente com suas injustiças e ilegitimidades.

O recado é claro. Não pensem em querer mais, aceitem as condições que a sociedade lhes oferece. Rebelião, nem pensar!

Qualquer estratégia minimamente séria para construir uma democracia entre nós terá que enfrentar esse extermínio de negros pobres, trabalhadores que moram nesses bairros onde a lei e a ordem são ditadas pelo tráfico ou pelas milícias, momento em que a polícia vem com suas operações para corroborar e ampliar com suas ações violentas esse padrão para esses territórios, nos quais direitos, cidadania, civilidade e o respeito aos direitos mais básicos e elementares desses brasileiros e brasileiras são banidos e desconsiderados.

Não é possível ignorar que a linha do tempo dessa prática genocida tem início na abolição superficial da escravidão, sem incorporar para valer, com direitos e oportunidades iguais, os descendentes dos africanos que para cá vieram escravizados. As primeiras favelas surgiram com a expulsão de um número grande de trabalhadores escravizados das fazendas e casas dos senhores.

Vai ser necessário construirmos um grande, poderoso e amplo movimento social democrático, antirracista, com uma estrutura capaz de produzir informação confiável e resultados capazes de modificar essa realidade e capaz também de sensibilizar a toda a sociedade, incluindo as camadas médias da sociedade, para que se posicionem favoráveis a esse processo de democratização da sociedade brasileira.

Vai ser preciso distribuir renda e aumentar o acesso a bens, serviços e direitos desses cidadãos e cidadãs e, por outro lado, qualificar as relações sociais, e isso significa dignidade e respeito para todos. Levar a sério o princípio da democracia como uma sociedade de iguais.

E, principalmente, romper com a natureza do Estado brasileiro herdado da escravidão.

Vai ser preciso, com o objetivo de construir igualdade e dignidade, abrir para todos os brasileiros e brasileiras, como fizemos com as universidades, todos os espaços sociais que hoje signifiquem privilégios de alguns e qualificar a relação do Estado brasileiro com os trabalhadores pobres, deserdados, excluídos e que vivem nas periferias.

Teremos que desenvolver um urbanismo para regenerar e qualificar as periferias e integrar em outras bases esses territórios à dinâmica das nossas cidades e vai ser necessário uma ação intensa para levar políticas sociais e serviços a esses territórios, para possibilitar o desenvolvimento em escala desses trabalhadores e suas famílias que aí moram.

Uma mudança significativa será reconhecer e universalizar os direitos e transformar todo o país em um ambiente de oportunidades e direitos iguais para todos.

Se não formos capazes de nos comprometer com essa meta civilizatória e nos diferenciarmos profundamente das forças políticas conservadoras e socialmente reacionárias, seremos vistos, sem maiores diferenciações, como parte do lado opressor e privilegiado.

O descrédito e um certo cansaço da sociedade em relação à democracia e à redução das expectativas na política só será revertida se formos capazes de cumprir essa missão e outras, igualmente importantes e centrais para termos uma sociedade civilizada.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.