Doutrinação liberal em Shang-Chi, Patrulha Canina e em Guardiões da Galáxia – Por Rafael Fagundes

A partir de sua indústria cultural, os EUA disseminam a ideologia neoliberal, doutrinando as pessoas desde tenra idade

Foto: Disney/Divulgação
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O filme “A lenda dos dez anéis”, do protagonista chinês Shang-Chi, segue o modelo clássico da Disney. O herói foge do controle de seu pai, um tirano que enriqueceu assassinando pessoas e assaltando vilas. Quando é designado pelo pai para matar o assassino de sua mãe, Chi recusa a missão e vai para os Estados Unidos.

A visão liberal de que a pessoa deve começar do nada para crescer logo é representada ainda no limiar da narrativa. Chi, de príncipe, torna-se um empregado do estacionamento de um hotel de luxo. É interessante o momento em que o jovem e sua amiga sino-estadunidense disputam pelo direito de dirigir o carro esportivo luxuoso de um cliente. É a competição divertida e saudável para se experimentar (já que, nessa cultura do efêmero, é mais prazeroso experimentar do que ter).

As pessoas vivem de forma autônoma, numa espécie de sociedade alternativa à do tirano chinês (que nos quadrinhos é o vilão Mandarim), que se encontra no interior de uma floresta mágica rodeadas por criaturas amigáveis e sobrenaturais. Vivem sem a intervenção do tirano, do Estado oficial, unindo-se ao jovem americanizado e sua amiga de descendência chinesa, que nem mandarim sabe falar, para combater o velho dono dos dez anéis.

O bem está relacionado à autonomia política que vive meritocraticamente sem a intervenção do Estado, este representado como tirano. É a utopia neoliberal.

O mesmo podemos assistir na animação recente da Patrulha Canina. Até agora, ninguém sabia quem bancava Ryder e os cachorros heróis. No desenho animado da TV, não fica claro se eles são uma instituição administrada pela prefeita da Baía da Aventura. Mas no filme tudo é revelado. Os heróis vão para a Cidade da Aventura, governada pelo prefeito Humdinger, aquele senhor não muito simpático de cartola, que odeia cachorros.

Quando a Patrulha chega à nova base urbana altamente sofisticada, equipada com a tecnologia mais moderna, Chase pergunta para Ryder: “Como pagamos por isso?”. Ryder pega a camiseta com a estampa da Patrulha Canina e diz: “Isso vende muito”. Ou seja, a Patrulha Canina é uma empresa capitalista privada independente do Estado. O objetivo é mostrar para as crianças que o mercado salva as pessoas dos problemas criados pelo governo. É puro neoliberalismo. O prefeito Humdinger é o grande vilão da história. Ele sempre promove experimentos catastróficos para a cidade e a Patrulha salva os cidadãos da má-gestão do prefeito. O Estado não presta, viva o mercado!

Para incrementar ainda mais os elementos simbólicos, a mais nova integrante da equipe é uma cadela de rua chamada Liberty. Uma representação de que o mercado é livre e aceita qualquer um, independentemente da classe, desde que mostre eficiência, isto é, seja útil para os propósitos da empresa Patrulha Canina. No final, o prefeito é preso pela empresa privada de segurança composta por cães. É a ideologia neoliberal ensinada à criança de que o mercado está acima de tudo e que precisamos nos livrar do Estado. Um absurdo...

Já no game Guardiões da Galáxia, lançado este ano para PS4 e PS5, XBOX one e Series e PC, a utopia liberal é representada pelo grupo de heróis que luta contra o domínio de uma seita religiosa conservadora. Esta seita penetra na mente das pessoas, convencendo-as de suas promessas a partir dos elementos tradicionais que a modernidade vem exterminando, como a família, a posição tradicional da mulher etc.

No game, assim como nas outras mídias nas quais tais heróis são mostrados, há uma alta admiração a um lugar chamado “Lugarnenhum”. Trata-se da cabeça de um imenso robô onde diversas culturas convivem trocando mercadorias, divertindo-se em bares, em casas de entretenimento etc. Não há Estado, todos vivem de suas economias dependendo apenas do comércio. É a realização da utopia liberal.

Utopia de Adam Smith, muito bem analisada por Armand Mattelart, em que “nenhuma contradição, tampouco, entre as obrigações relativas à moral e as concernentes ao comércio. O indivíduo livre para vender e comprar se torna uma ‘espécie de mercador’, e a sociedade inteira, composta de produtores e de consumidores co-comercistas, uma ‘sociedade de comércio’”.[1]

Os guardiões representam um tipo de relação de trabalho muito valorizada por esta utopia liberal. Eles não têm patrão. São contratados para realizar um serviço. São o símbolo do proletariado de serviços que emerge com grande força após a crise de 2008.

“Lugarnenhum” é dominado pela seita religiosa, destruindo a utopia liberal, o que leva os heróis e outros agentes defensores desta utopia a se unirem para expulsar a dominação tradicionalista.

Em certa altura da aventura, já próximo do fim, Mantis, uma alienígena que pode enxergar entre diversas realidades paralelas e ver diversos futuros e passados possíveis, afirma, após Quill ter dito que tinha “muitas perguntas para fazer”, que também tem muitas respostas para dar, e uma delas é: “Tomem os meios de produção”.

Numa primeira abordagem, podemos crer que seria uma posição revolucionária desse produto cultural, mas não. Hoje, essas empresas que usam das TIC para a produção não precisam mais ser donas dos meios de produção, mas apenas do capital. A retórica é da “democratização dos meios de produção (bastaria ter um computador/celular, carro ou mesmo bicicleta para a produção autônoma de renda…)”.[2] É um discurso que transforma o trabalhador em cliente, “alegando liberdade para trabalhar quando, onde e como quiser”. Mas a realidade é bem diferente. Os trabalhadores, nesta lógica perversa, passam a pagar pelos meios de produção para gerar lucros aos que viabilizam o serviço.

Isso se explica, como colocou Jamie Woodcock, pelo fato de que “a relação econômica específica de produção […] molda os tipos de hardware, software e jogos eletrônicos que podem ou são produzidos”.[3] Como mostra o sociólogo inglês, o próprio processo de produção dos games está submetido a essa lógica perversa de precarização do trabalho promovida pelo capitalismo em sua fase atual.

É como disse uma vez o filósofo Wittgeinstein: “Foram muitas as vezes em que aprendi algo a partir de um filme americano tolo”. A partir de sua indústria cultural, os EUA disseminam a ideologia neoliberal, doutrinando as pessoas desde tenra idade. Se não nos debruçarmos sobre estes instrumentos a partir de uma perspectiva crítica, será muito mais difícil fomentar a percepção do consumidor do verdadeiro propósito destes produtos, que é reproduzir as relações sociais de produção.


[1] MATTELART, A. História da utopia planetária. Porto Alegre: Sulina, 2002, p. 86-87.

[2] FILGUEIRAS, V. e ANTUNES, R. Plataformas digitais, uberização do trabalho e regulação no capitalismo contemporâneo. In: ANTUNES, R. (Org.) Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020, p. 63.

[3] WOODCOCK, J. Marx no fliperama: videogames e luta de classes. São Paulo: Autonomia Literária, 2020, p. 181.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.