E se Sócrates jogasse bola em tempos de Covid-19? – Por Raphael Fagundes

Em uma sociedade mercantilizada, na qual muitos se conformaram com a democracia liberal, é de se esperar um empobrecimento da crítica.

Foto: ESPN (Reprodução)
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O ex-jogador e comentarista de futebol Neto, criticou a posição dos jogadores da seleção brasileira em relação à catástrofe sanitária: “Qual foi a entrevista que eles deram, a visão política, a visão social em relação ao momento que a gente vive? Os jogadores de seleção Firmino, Gabriel Jesus, Casemiro. Ninguém falou nada! Aí, eles comentam Big Brother. Do povo, do nosso sofrimento, ninguém falou uma vírgula”.[1]

Casagrande já havia se posicionado sobre o tema: "Todas as classes estão se posicionando, falando, mostrando que estamos indo para a destruição completa do país através de um clã perverso, sem alma. Vejo a classe artística, o cinema, a música, todos gritando. Claro que os profissionais da saúde mais do que ninguém estão mostrando o descaso e o terror dentro dos hospitais. Mas e no futebol? Ninguém mesmo vai falar? Nem para concordar com o que está acontecendo?"[2]

Quando se fala de figuras que “pensavam” no futebol, tem-se o costume de destacar João Saldanha e Sócrates. O primeiro foi membro do Partido Comunista Brasileiro e não tinha medo dos generais que queriam intervir na escalação de seu time. O segundo era militante do PT e lutou pelas Diretas Já.

Mas também houve Tostão, que deu uma entrevista emblemática em O Pasquim revelando seu posicionamento mais à esquerda, mas recebeu uma ligação que o obrigou a não se manifestar caso quisesse continuar a jogar pela seleção.

Foi, inclusive, por isso que Gilberto Gil, em uma música feita em homenagem a Afonsinho, jogador que adotava um estilo ousado, dizia “E eu não sou Pelé nem nada/Se muito for, eu sou um Tostão/Fazer um gol nessa partida não é fácil, meu irmão”.

Mas entre os jogadores que se colocavam contrários aos interesses dominantes está também o saudoso Leônidas da Silva que, em 1945, declarou o seu voto em Yedo Fiúza, candidato pelo Partido Comunista Brasileiro justificando: “Voto Fiúza porque sou um homem do povo".

Por um lado menos popular, temos a participação de Friedenreich na Revolução de 1932 contra o intervencionismo de Vargas em São Paulo. O craque doou “troféus e medalhas obtidos durante anos de vitórias no futebol", para a causa paulista.[3]

Garrincha e sua esposa Elza Soares – que havia cantado no comício de João Goulart em 13 de Março – foram ameaçados por policiais após o Golpe de 1964, por mostrarem-se simpatizantes do presidente deposto.[4]

Cabe ressaltar que o próprio Jango “havia sido jogador de futebol, atuando como volante no Cruzeiro de São Borja e no Internacional, até uma infecção o afastar dos gramados".[5]

Mas não foi somente a classe dos músicos (como vimos no caso de Gil) que representou estes jogadores políticos. Na Copa de 1978, a Argentina e o Brasil passavam por ditaduras militares, por isso, exilados políticos argentinos criaram, na França, um comitê de boicote à Copa da Argentina, o COBA. Pacifistas e intelectuais aderiram ao movimento, como Alain Touraine, Jean Paul Sartre e Roland Barthes. Mas o movimento não teve apoio de outras seleções.

A razão do silêncio não é exclusivamente por conta da mercantilização excessiva do futebol, já que os outros setores culturais também tornaram-se extremamente capitalizados nas últimas décadas.

A questão é que o setor artístico, historicamente, sempre esteve ligado a temas políticos, compondo o que se chamava de vanguarda. Contudo, em relação a tempos passados, observamos um enfraquecimento deste setor no que tange temas mais politizado. Ainda assim é muito mais fácil esperarmos uma posição dos artistas que dos atletas.

Em uma sociedade mercantilizada, na qual muitos se conformaram com a democracia liberal, é de se esperar um empobrecimento da crítica. Nestas condições, aguardar manifestações de setores onde a crítica não é um pilar, é uma esperança inautêntica.

Todavia, assim como é importante lembrar destas figuras que tinham um compromisso com a cidadania é, por sua vez, de extrema importância a crítica destes ex-jogadores a essa nova geração. Uma coisa é certa: se Sócrates jogasse bola nos dias de hoje, dificilmente ficaria calado, talvez até se recusaria a jogar em meio a uma pandemia que mata três mil pessoas por dia.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.


[1] https://www.google.com/amp/s/esporte.ig.com.br/futebol/2021-03-22/neto-detona-posicionamento-de-jogadores-na-pandemia-e-apoia-fala-de-casagrande.html.amp

[2] https://www.google.com/amp/s/www.uol.com.br/esporte/ultimas-noticias/2021/03/07/casao-aponta-codigo-de-silencio-no-futebol-sobre-pandemia-e-politica.amp.htm

[3] AGOSTINO, G. Vencer ou morrer. Rio de Janeiro: Mauad, 2002, p. 141.

[4] FRANCO Jr. Hilário. A dança dos deuses. São Paulo: Cia das Letras, 2007, p. 138.

[5] AGOSTINO, G. op. Cit., p. 153.

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