Espírito do Carnaval no apagão pandêmico – Por Filippo Pitanga

Possibilidade de novos projetos pela Lei Aldir Blanc e estreia de videoclipe sobre o Carnaval do artista João Amorim, do Amapá, nos levam a refletir sobre a diversidade cultural neste período

Foto: Dyego Bucchiery
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A recomendação mundial ainda é a de distanciamento social e evitar aglomerações e lugares fechados... Porém, o que se viu durante este período de Carnaval 2021 foram blocos sem autorização e festas clandestinas, colocando muitas vidas em risco. O que também não quer dizer que toda e qualquer manifestação artística e compartilhamento cultural deveriam paralisar de vez... O ser humano não se alimenta apenas de ar e há outras formas e criações que sempre se adaptam. Afinal, Carnaval é muito mais do que uma festa. É também estética que se amplia em inúmeras outras linguagens.

Uma das formas de comunicação deste nosso grande evento anual, e que muito absorveu suas influências e variações, decerto é o audiovisual, mais notadamente a música e o cinema. E foi na última quarta-feira de cinzas, 17 de fevereiro, que chamou minha atenção o lançamento do videoclipe “Deusa”, de artista em ascensão do Amapá para o Brasil e para o mundo, João Amorim, dirigido pelo cineasta mais proeminente da nova geração de lá, Célio Cavalcante Filho. Eles conseguiram incorporar não só o espírito da saudade daquilo que a gente não viveu este ano, como demonstra a força da regionalidade e necessidade em se descentralizar nossas produções afora do monopólio sudestino brasileiro (assista clicando aqui).

Expoente da cena musical que já deu ao Brasil nomes como Patrícia Bastos (indicada ao Grammy latino em 2017), o cantor e compositor tucuju se preparava no ano passado para embarcar numa turnê badalada por nove estados da Amazônia quando foi decretada a primeira quarentena total no Brasil. Assim como tantos artistas mundo afora, o amapaense João Amorim (35) teve sua carreira duramente impactada pela pandemia da Covid-19. 

Amorim planejava as filmagens do clipe de “Deusa”, seu terceiro single que fará parte do disco Festa Temporã, quando viu todos os seus planos e projetos profissionais interrompidos por tempo indeterminado. Além da angústia infligida pela pandemia e pelo isolamento, João vivenciou junto com milhares de amapaenses o apagão que deixou o estado sem luz e abastecimento de água por mais de um mês. “No apagão eu tive que esquecer que eu era artista. Eu era o pai de duas crianças de cinco anos que tinha que correr atrás de água e comida para manter a nossa casa”, conta ele.

O lançamento da Lei Aldir Blanc, no ano passado, possibilitou a retomada do trabalho para artistas em todo o país. No caso de João, foi a oportunidade para retomar o sonho de lançar “Deusa”, que chegou ao Youtube nesta última quarta-feira de cinzas (17). A escolha da data não foi por acaso. O clipe, assim como a música composta em parceria com Danilo José, traduz a nostalgia de um carnaval no mundo sem pandemia, usando, para isso, de elementos do universo fantástico do cinema e da fabulação da realidade.

Foto: Dyego Bucchiery

Corpos que flutuam livremente pelos quadros, uma chuva eterna de confete e purpurina colando a montagem, ou mesmo carros alegóricos vazios como sonhos ainda por serem habitados e cavalgados são signos que povoam nosso imaginário neste período. A atriz e bailarina Mariana Andrade interpreta a “Deusa” que inspira a canção e tudo isso ainda foi filmado respeitando o pacote completo de protocolos de segurança exigidos. A caprichada produção foi rodada no galpão da escola Maracatu da Favela, entre as alegorias do desfile de 2020, que serão destruídas nos próximos meses para dar lugar aos adereços do próximo carnaval.

A música “Deusa" foi produzida e será distribuída em todas as plataformas digitais com o patrocínio do Prêmio Edital 004 Fumcult/PMM Lei Aldir Blanc, bem como o videoclipe musical de "Deusa" foi produzido com o patrocínio do Edital de Fomento Lei Aldir Blanc 003/Secult. O que nos leva a retomar a debate em exigir verbas públicas para a proteção de patrimônios históricos que não se preservam apenas na data festiva tradicional, como o Carnaval, e sim através de muitas outras ferramentas de propagação e conservação da memória, como a música e o audiovisual, especialmente ao se pensar em regiões que não sejam contempladas normalmente pelos editais e patrocínios públicos ou mesmo privados...

‘Brasileiro costuma ter memória curta’, é o que sempre ouvimos. Mas isso não é bem verdade, apesar da desculpa estrutural dada sob a perspectiva do povo. Só que devemos lembrar que a preservação do patrimônio histórico cultural de um país é dever constitucional previsto em relação ao Estado e ao governo federal, questões que andam sendo negligenciadas e às vezes até desmanteladas sistematicamente na administração atual, não fosse por exceções de resistência como a Lei Aldir Blanc – uma luta ferrenha travada pelos opositores à administração pública vigente e que não concordam com o desmonte da cultura.

Portanto, para celebrar o espírito imortal do Carnaval, que existe retroativamente desde sempre em nossos corações, e sempre irá perdurar, a Fórum lista uma seleção especial de filmes que envolvem o Carnaval em sua temática principal ou como pano de fundo, e ainda ajuda vocês a encontrarem onde assistir.

Segue, em ordem alfabética, pois jamais poderíamos colocar em hierarquia algo tão necessário para a lembrança atemporal: “84 minutos” de Nelson Hoineff (2016) – assista aqui; “Carnaval Atlântida” de Carlos Manga e José Carlos Burle (1952) – assista aqui; “Clementina” de Ana Rieper (2018) – assista aqui; “Damas do Samba” de Susanna Lira (2013) – assista aqui; “Estou me Guardando para quando o carnaval chegar” de Marcelo Gomes (2019) – assista aqui; “Ó, Pai, Ó” de Monique Gardenberg (2008) – assista aqui; “Orfeu Negro” de Marcel Camus (1959) – assista aqui; “O Samba da Criação do Mundo” de Vera de Figueiredo (1978) – assista aqui; “Rio, Zona Norte” de Nelson Pereira dos Santos (1957) – assista aqui; “Samba” de Thereza Jessouroun (2001) – assista aqui.